Arte da Pintura, Simetria e Perspetiva
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- 1 de nov.
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Atualizado: há 23 horas
Composta por Filipe Nunes, natural de Vila Real. Em Lisboa, ano de 1615.
[Texto de 1615, mas adaptado ao português corrente. Quando necessário, reescrevi as palavras com a grafia contemporânea, mantendo o sentido original. As minhas anotações estão entre colchetes. Frequentemente, optei pela pontuação da reedição de 1767, pois é mais fácil de ler. Ocasionalmente, mudei a pontuação para as regras atuais, mas apenas em frases de difícil leitura. Quem quiser consultar os textos originais, pode clicar aqui para ser reencaminhado para a biblioteca da Ciarte, um excelente trabalho de António João Cruz, que inclui as edições de 1615 e de 1767. A edição de 1767 também se acha aqui].
PRÓLOGO AOS PINTORES.
Quando aprendi estes princípios e prática da Pintura, não foi minha intenção fazê‑la chegar à luz de imediato aos Sábios e Peritos na Arte, mas só àqueles que a aprendem, e aos curiosos dela. Moveu-me a isto ver a falta que há de quem trate esta matéria, e assim quis dar motivo aos que mais sabem, de fazerem luz com mais experiências, para que assim não custe tanto aos aprendizes, a que ordinariamente os Mestres escondem os segredos da Arte, e para que assim mais depressa se saiba.
Por onde lhes digo aqui brevemente o mais comum, ou o que mais comumente se costuma usar, porque usando irão descobrindo mais segredos.
Para os Mestres podem servir os princípios da Perspectiva, por serem tão importantes para o bom uso dela, e juntamente a Simetria, de que há tanta falta nos lineamentos, que ainda Pintores que sabem muito bem colorir, os não sabem, de onde vem haver tantas imperfeições nas figuras.
Emende, e acrescente quem souber, e aprenda quem não souber, e todos dêem Glória ao Senhor. Qui vivit, et regnat per omnia saecula saeculorum.
[Que vive e reina por todos os séculos dos séculos].
LOUVORES DA PINTURA.
É a Pintura uma Arte tão rara, e tem tanto que entender, e mostra tanta erudição, que deixo de a chamar rara, para lhe chamar quase divina, e não digo muito, pois é tão rara e excelente, que toca quase ao conhecimento divino, ter na mente tão vivas as espécies das coisas, que assim se possam pôr em prática, e Pintura que parece que lhe não falta mais que o Espírito.
Testemunho desta verdade é aquela história celebrada da contenda de Zêuxis, Heracleotes [de Heracleia, antiga cidade da Magna Grécia, situada onde hoje fica a província de Matera, no sul da Itália] com Parrásio, como conta Plínio, livro 35, capítulo 10, que pintou com tanta propriedade um cesto de uvas, que as aves do Céu se vinham a elas cuidando que eram verdadeiras, e a toalha que Parrásio pintou tanto ao natural, que enganou com ela ao mesmo Zêuxis.
Badeo, in l. Athletas, ss. de his, qui notantur infamia [talvez seja: Guillaume Budé, na lei Athletae, fala a propósito daqueles que são marcados com infâmia], diz que houve antigamente Pintores tão insignes, que não só faziam imagens icónicas, senão também as éticas. Chama icónicas imagens, porque era costume na Cidade Olímpia, donde se fizeram os jogos olímpicos, que aqueles que venciam três vezes a estes, lhes faziam retratos do tamanho do seu corpo, e muito ao natural; a estas chamavam icónicas, e as éticas quer dizer que mostravam ao vivo os costumes e natureza de cada coisa.
Não só deleita, e agrada aos olhos a Pintura, mas faz fresca a memória de muitas coisas passadas, e nos mostra diante dos olhos as histórias há muito tempo acontecidas. Serve mais a Pintura que, vendo pintadas as façanhas, e casos ilustres nos excitamos, e animamos para cometer outros semelhantes, como se as lêramos em historiadores. S. Damásio, de fé ortodoxa, c. II, de S. Gregório, Epístola ad Serenum Episc, [Papa Gregório Magno, retirada de uma das suas Cartas ao bispo Serenus de Marselha, censurando-o por ter destruido imagens sagradas] falando a este propósito diz assim:
Sunt quidem picturae indoctorum hominum libri, et scripturae, nam quod legentibus scriptura, hoc idiotis praestat pictura cernentibus: in ipsa et ignorantes vident quod sequi debeant, et in ipsa legunt qui litteras nesciunt.
[De facto, as ilustrações num livro destinado a pessoas sem instrução são como a própria escrita: o que a escrita proporciona àqueles que sabem ler, as imagens proporcionam àqueles que as contemplam. Nelas, os ignorantes veem o que devem seguir e, nelas, aqueles que não sabem ler as letras, lêem.]
E isto de São Gregório, corrobora o Segundo Sínodo.
Onde prova com ditos de Santos que a Pintura boa, e de doutos Pintores (que a Pintura ruim serve de riso a quem a vê) é mais poderosa para mover o afeto que a história. S. Chrysost. orat. quod vet. & nov. test. unus sit legislator, [São João Crisóstomo, Sermão de que o Antigo e o Novo Testamento têm um só Legislador] diz que teve sempre em muita estima uma pintura que tinha colorida com cores de cera. E S. Gregório, Nísseno, Orat. de unitate Filii et Spiritus Sancti [Sermão sobre a unidade do Filho e do Espírito Santo] diz de si que muitas vezes pôs os olhos em um painel em que estava pintado o Sacrifício de Abraão, e que jamais o viu sem lágrimas, lembrando-se da história verdadeira.
Vidi saepius (diz ele) inscriptionis imaginem, et sine lacrimis transire non potui, cum tam efficaciter pictura ob oculos poneret historiam.
[Vi muitas vezes (diz ele) a imagem da inscrição, e não pude passar por ela sem lágrimas, pois a pintura apresentava diante dos olhos a história com tanta eficácia].
Ainda os filósofos antigos, para persuadirem os homens a deixarem as delícias, pintaram uma tábua com as Virtudes que todas estavam servindo como criadas (sendo virgens, e muito formosas) a uma Rainha muito feia, a qual estava em um trono alto, e muito aparatado, e se chamava Voluptas, o deleite do pecado. Para darem a entender quão abominável era aos homens servirem a quem tão mal o merecia, assim quando queriam repreender quem não vivia bem, lhe punham diante dos olhos esta tábua, da qual faz menção Cícero, livro 2 de De Finibus, e diz que a pintou Cleantes Estóico [Cleantes de Assos, desportista boxista e, posteriormente, filósofo líder da academia da escola estóica de Atenas].
Donde se podem repreender os hereges que pretendem tirar o culto e uso das imagens e das pinturas, pois até os Antigos entendiam de quanta importância eram.
A autoridade e estima em que se teve antigamente esta Arte se pode ver do que diz Plínio, livro 35, à cap. I, verso que ad decimum. De Pamphilo [Pânfilo de Anfípolis, pintor do séc IV a.C. e mestre de Apeles] refere que jamais quis ensinar o discípulo que lhe não desse dez anos, e um talento ático, que agora em nossa moeda é seiscentos cruzados; tudo isto lhe deu Apeles e Melânthio, por terem seus discípulos, e com o exemplo de tão grandes Mestres procedeu em Sicyone [Segundo fontes clássicas, Sicião foi o principal centro de ensino de pintura na Grécia], cidade antiquíssima junto a Corinto, e celebrada pela imagem da ocasião que fez Lisipo depois em toda a Grécia, que os moços antes de saber alguma Arte os ensinavam a debuxar, em taboas de de buxo, que para isto tinham concertadas ao modo que hoje costumam os oriundos ensinar aos que aprendem o ofício: e tudo isto era para efeito de fazerem que esta Arte tivesse o primeiro lugar entre as liberais, porque sempre foi tratada de excellentíssimos engenhos.
Tenham os Pintores lugar muito honrado (diz F. Patrício, de instit. Reipub.) [Francesco Patrizi da Cherso, Sobre a instituição da República], porque com a honra dele se animem a procurar maiores honras, e assim deem também ânimo aos que houverem de aprender tal Arte, como diz o poeta, Honor alit artem, &c [A honra alimenta a arte]. Não se pejou nem envergonhou aquele grande Fábio, Patrício Romano, do qual dizia que vinha por linha direta do grande Hércules, nem se desprezou de a aprender, e usar, e tanto que dela tomou o sobre nome, chamando-se Fábio Pictor [Caio Fábio Pictor, artista romano da alta nobreza, que pintou os frescos do templo da deusa da saúde Salus, em 304 a.C.].
Nem a desprezou Marco António, imperador doutíssimo, pois a aprendeu e exercitou com o Pintor Diógenes. Também lemos de Platão, que nela se exerceu, e foi curiosíssimo dela. Cícero diz dela que sempre lhe foi afeiçoado; Alexandre a louva grandemente, e manda que os moços se deem a ela e a aprendam. O glorioso S. Lucas nela se exercitou, etc. Serve esta Arte à Escultura, à Celatura [arte de gravar com buril], e à Arquitetura, que sem ela não se pode debuxar nada.
Quais fossem os primeiros Pintores, e de quais foram as obras antigamente mais estimadas, se pode ver em Plínio no lugar acima alegado, desde o primeiro capítulo até os onze. Os primeiros, que começaram a usar uma só cor com que pintavam, que a natureza lhes ensinou sem arte, foi Polignoto, e Aglaophon [Aglaofonte (final do séc. VI a.C.) e seu filho ou sobrinho Polignoto (séc. V a.C.), ambos da ilha de Tasos, Grécia] ; antes destes houve outros, dos quais se não diz bem da sua pintura, pois era necessário pôr um letreiro sobre o que pintavam para se adivinhar que coisa era, porque pelas sombras que as coisas faziam, por ali debuxavam. Deste foi um deles Canacho [Canacho de Sicião foi um escultor de finais do séc VI a.C.], e hoje pode ser haja muitos.
Também houve outro chamado Calamides, do qual diz Cícero que já pintava melhor que Canacho. As pinturas de Míron já iam sendo melhores; daí por diante sempre foi melhorando a Arte até o tempo de Protógenes, Actião, Nicomacho, e Apeles, [Protógenes, Écion ou Aetion, Nicômaco e o mais celebre pintor grego antigo, Apeles. A lenda diz que Apeles visitou o estúdio de Protógenes, e encontrando-o ausente, desenha um contorno finíssimo. Protógenes, ao regressar, reconhece que apenas Apeles poderia ter pintado algo assim, e traça outra linha ainda mais fina sobre a primeira. Apeles regressa ao estúdio e traça finalmente uma terceira linha sobre as anteriores, perfeita e quase invisível] e acabaram de aperfeiçoar a Arte segundo lhes parecia, ainda que depois se acharam e inventaram muitas coisas, porque Zêuxis, e no mesmo tempo Parrásio (que viveram no tempo de Sócrates) muitas coisas acrescentaram à Arte, porque a Zêuxis atribuem os claros e escuros, e as luzes nas figuras, e foi tanto que ganhou com suas pinturas, que já as não vendia, mas as dava, dizendo que não havia preço igual a elas, e fez o seu nome de letras de ouro, que pôs na Cidade Olímpia, celebérrima por ser frequentada de todos os bons engenhos.
Parrásio foi o que lançou as linhas sutilmente, e juntou à pintura certas coisas de Geometria, e foi o primeiro que deu à pintura a Simetria, ainda que Plínio diz que foi Policleto, que são as medidas e comensurações [proporções], e foi o primeiro que deu a perfeição aos cabelos e à boca, e nisso levou a palma a todos. Entre as suas obras de fama, foi o Archigallo, que era o principal dos Sacerdotes de Cibele [sacerdotes orientais, geralmente eunucos], de quem diziam que era a grande mãe dos Deuses, pintura tão estimada, que deu por ela o Príncipe Tibério seiscentos sestércios, que em moeda atual é perto de mil cruzados [Mil cruzados seriam o preço de um palacete em Lisboa].
Também Aristides Tebano foi Pintor insigne, igual quase a Apeles, como diz Plínio. Este foi o que de um certo modo dava vida à pintura, porque nela estava declarando todos os sentidos. O rei Átalo teve uma tábua sua, que comprou por cem talentos. E César ditador teve duas tábuas do mesmo oficial, que lhe custaram oitenta talentos.
Filipe Macedónio e seu filho Alexandre muitas vezes se achavam na tenda de Apeles, pela grande recreação que tinham, em ver pintar, e portanto floresceu esta Arte tanto em seus tempos. De Apeles diz Plínio, que não lavrava mais que com quatro cores somente [argila branca da ilha de Milo, ocre amarelo da zona de Atenas, ocre vermelho da cidade do Ponto (Turquia), negro do fumo da queima do azeite], e o mesmo Alexandre Magno mandou que nenhum Pintor o ousasse retratar, senão só Apeles. Delle diz Plínio muitas coisas. Não foi menor Timantes [pintor grego da ilha de Citnos, do séc. IV a.C.] na pintura de Ifigénia, que pintando a todos tristes, pintou a Agaménon, pai dela, com a cabeça virada, pela grande tristeza que se divizava mais nele, que nos outros, sendo assim, que a todos pintou tristíssimos [Para expressar a dor de Agamémnon, o pai de Ifigénia (que iria ser sacrificada), decidiu representar-lhe o rosto velado].
![[Fresco romano de Pompeia (séc. I), em que o original de Timantes, pintado 500 anos antes, ainda influenciou esta imagem].](https://static.wixstatic.com/media/a50b1d_da00d78190504d2b90fccf4c9110bf54~mv2.png/v1/fill/w_600,h_614,al_c,q_90,enc_avif,quality_auto/a50b1d_da00d78190504d2b90fccf4c9110bf54~mv2.png)
São os Pintores de jure [por direito] privilegiados e pelo conseguinte nobres. Text. in leg. Archiatros, C. de metatis, lib. 12. [Código de Justiniano, Livro 12]. E esta Arte, como tendit ad ornatum Ecclesiae [como tende ao ornamento da Igreja], sempre se pode exercitar, ainda que haja proibições, como diz Bart. in lege prima, ff. ne quid in loco sacro fiat [como diz Bartolo de Sassoferrato na primeira lei do Digesto "Que nada seja feito em lugar sagrado"].
Valentiniano, Valente e Graciano, imperadores, privilegiaram aos Pintores, leg. Pictura, C. Theod. de excusat. artificum, lib. 13. [Código de Teodósio, Livro 13]
Picturae professores, si modo ingenui sunt, placuit nec sui capitis censeantur, nec uxorum aut liberorum nomine tributis esse munificos, nec servos quidem barbaros in censuali adscriptione profiteri, &c. [Filipe Nunes traduz de seguida].
Os Professores da Pintura, sendo livres e filhos de livres, havemos constituído que não sejam empadroados por sua cabeça, nem que em nome de suas mulheres e filhos estejam sujeitos aos tributos, que não sejam obrigados a registrar seus escravos bárbaros no registo censual, etc.
De tudo o que está dito, se prova claramente ser esta Arte numerada entre as liberais, porque se começarmos pela definição, Artes liberais se chamam, por serem Artes com que se exercita o entendimento, que é a parte livre, e superior do homem; ou artes dignas de homens livres, e também liberais, porque só se permitiam a homens livres. E se elas se chamam liberais, porque nelas se exercita o entendimento, onde entra mais o entendimento com todas suas operações: aprender, compor, julgar e discorrer, que na pintura? É em toda Arquitetônica, porque se estende a significar perfeitissimamente, e dar razão de todas as obras, que fazem todas as outras artes e ofícios.
E se se chamam liberais, porque só se permitem a homens livres, sabemos que entre os Romanos lhes era proibido aos nobres usarem ofícios mecânicos, e desta usava-se publicamente: logo se fosse mecânica não se usaria, e que se usava publicamente prova a história de Fábio Pictor já referida. E sabemos que a usou também o imperador Alexandre Severo, de quem foi tutor, e mestre o mesmo Vulpiano, jurisconsulte e autor desta mesma lei, e a usaram outros muitos.
E se chamam liberais, porque são artes de entendimento; nenhuma das outras tem tanto que aprender como a pintura, porque as outras em breve tempo se chega a ter conhecimento perfeito delas, mas a Pintura, por mais que se trate e curse nela, jamais se chega a penetrar todos os segredos dela, como diz Quinciliano, Orac. Instit., lib. 12, cap. 10. E isto significa que os Pintores, quando põem ao pé das figuras, faciebat ou pingebat [faziam ou pintavam], usando deste pretérito imperfeito, porque nenhum pode chegar ao pretérito perfeito, porque sempre há que fazer, e que saber. De onde veio o provérbio latino, praeclat medicum esse quam pictorem; melhor é ser médico que Pintor.
Disseram isto pela grande prolixidade, que tem esta Arte consigo, e também porque as faltas na Pintura logo se deixam ver, e na Medicina não: porque se um Médico acerta a cura, é louvado por isso; mas se erra, e mata um homem, a terra cobre tudo, e não aparecem seus defeitos. De onde parece que é mais que a Medicina; porque, além das razões ditas, se é necessário conhecer as ervas, pedras, plantas, muito mais é necessário à Pintura, pois as há de pintar ao natural para se conhecerem, e nisto depende também a Medicina da Pintura: e senão vejam a Dioscórides, que lhe aprouve tratar de ervas, e plantas para a Medicina, se a Pintura não mostrara ao olho o que a pena por si só não podia. E o mesmo digo da Aritmética, Geometria, e Perspectiva, que parece que todas se incluem nela, e lhe são subordinadas nisto, que é formar figuras, e dar a conhecer os pensamentos, pois tudo vai por demonstrações, e estas não se podem fazer sem desenho e pintura, de onde se infere que elas são como rudimentos, e princípios, para se conseguir perfeitamente o fim da pintura. De onde Plínio, lib. 35, cap. 10, diz assim falando do Pintor Pânfilo:
Primus in pictura omnibus litteris eruditus, praecipue Arithmetice, et Geometrice, sine quibus negat artem perfici.
[O primeiro na pintura, ele era versado em todas as artes, especialmente aritmética e geometria, sem as quais negava que a arte pudesse ser aperfeiçoada].
E assim os Egípcios, como refere Cornélio Tácito, lib. 11, Annales, primeiro declararam seus conceitos por meio da pintura de animais; mas por ser coisa mais fácil para todos, vieram a usar do desenho, e caracteres de letras.
Conforme ao costume de Espanha é liberal esta Arte; porque estando estabelecido por lei do Rei D. João II de Castela, que os Cavaleiros armados para gozar de seus privilégios, não usassem de ofícios baixos, e particularizando todos, não nomeia a pintura. I 3. tit. I, lib. 6, novae recop., E nas pragmáticas sobre trazer sedas, lib. 2, tit. 12, li. 7, torna a contar os oficiais, que não podem trazer, e não conta entre eles os Pintores. Logo se prova bem que é contada entre as liberais, e que seja nobre não há dúvida alguma, porque o é por todas as três nobrezas: pela natural; porque produz grandes efeitos de virtude (porque quem há que vendo um Cristo crucificado, se não compunja? O que está provado acima de S. Gregório Nísseno), pela nobreza Teológica, e divina; porque produz efeitos sobrenaturais, e divinos, de piedade, caridade e religião; pela nobreza política está tão claro que não tem necessidade de prova.
Plínio chama aos professores desta arte nobres Pintores, o qual epíteto não se concede aos que usam as artes mecânicas. Chama-se nobre, porque ajuda com sua arte a acender os ânimos para ganhar nobreza, nome e fama, como já fica provado. Galeno, in exercit. ad bonas artes, diz que se pode ajuntar às liberais. Séneca, lib. de studiis liberalibus, dá a entender que se tinha por liberal em seu tempo. Alexandre, 8. polit., c. I, e seguinte. Plutarco, lib. de audient. poet. e lib. de gloria Athen., et in vita Arat.
Quem quiser ver mais louvores da pintura, veja Plínio nos lugares alegados. Veja F. Patrício, de laude Pictorum, e Textor, in officina, cap. Pictores diversi, e Budeo, e muitos outros; e entre os modernos, ao Licenciado Gaspar Guterres de los Rios, na sua Notícia Geral, lib. 3, e ao Padre Frei Jerónimo na sua Repub. Gentílica, e Thomas Garçón na sua Prática universal, disc. 90, com outros, que ali cita.
Princípios da Perspectiva, necessários para a Pintura.
Primeiro, que tratemos da Pintura, havemos de pressupor alguns princípios da Perspectiva, como convém, muito necessária para a Pintura. O sujeito da Perspectiva são as linhas visuais, e destas há duas espécies. A primeira é pelas quais procedem os raios direitos sem se quebrar, por meios dos quais se faz a visão direita. A segunda é daquelas linhas, pelas quais caminham os raios, que se quebram, ou se dobram, por meios dos quais se veem as coisas obliquamente. Daqui nascem duas partes da Perspectiva, segundo que ela se considera com estas duas espécies de linhas visuais, e a primeira se chama Óptica, como abaixo diremos. A segunda se chama Specularia [a ciência dos reflexos nos espelhos e superfícies polidas], da qual não é nosso intento tratar.
O modo de ver é de três sortes: por visão direita, ou reflexa, ou refrata. A visão direita é quando o raio visível do olho à coisa vista é perpendicular, ou seja de cima, ou de baixo, ou das ilhargas; de sorte que seja o olho o centro, em respeito das mais partes. Mais note-se, que com uma só visão não se podem ver muitas partes juntas.
A visão reflexa se faz nos corpos lisos e polidos, ou por natureza, ou por arte, assim como o são os espelhos, onde dá o raio, e logo vira ao olho, a modo de uma bola que lançais com força a um muro, e ela se torna outra vez a vós.
A visão refrata se faz quando olhamos por água, ou por vidro, ou por corpos diáfanos, e transparentes: chama-se refrata, porque, caminhando os raios do olho à coisa vista, termina-se aquele raio no corpo, que acha em meio, e daí parte então com outro à coisa vista, e faz um ângulo com o primeiro; e esta declinação, que faz o raio do seu direito curso, se chama visão refrata.
Devemos logo imaginar que a coisa que queremos ver é uma base de uma pirâmide, a qual se forma dos raios do ver, os quais partem do olho, como de centro, até a superfície, e contorno da coisa vista. E assim por estes raios se fazem os ângulos no centro do olho, pelos quais são as coisas diferentemente representadas.
E chamam os Latinos a este ver deste modo, Prospecto, donde vem perspectiva, e os Gregos lhe chamam Óptica, por ser um ver considerado; porque o ver simplesmente não é outra coisa mais, que receber naturalmente na virtude do ver a forma, e semelhança da coisa vista; mas o ver do Perspectivo é um ver considerado, e advertido, porque não se tem naturalmente, como o simples ver, mas considera, e busca o modo como se vê, e assim vê que da coisa vista vêm os raios ao olho de todas as suas partes que são vistas; porque não se podendo ela toda ver, mal podem de toda ela vir estes raios ao olho; de sorte que este ver é por linhas direitas.
E nenhuma coisa visível se vê toda juntamente, como se vê no exemplo que não vê o olho juntamente, B. C. D. E.
E assim serve também de prova para o mais que já está dito.

Segundo Princípio.
Neste segundo princípio se trata da medida dos ângulos, que dissemos faziam os raios vindo da coisa vista ao olho. E digo que a medida dos ângulos se tira das partes da circunferência, que são compreendidas, daquelas linhas, que fazem os ângulos.

[Esta ilustração da edição de 1767 tinha as letras C e D trocadas, pelo que tive de editar a imagem, que agora está corrigida. Mantive a letra B invertida do original]
As linhas, que fazem o ângulo B AC, o qual é ângulo reto, abraçam maior roda do meio círculo D B C, do que abraça o ângulo estreito B A F, por onde o ângulo B A C é maior que o ângulo B A F; consequentemente, muito maior que o ângulo F A D, e ambos são ângulos estreitos. Mas o ângulo F A C, que é ângulo largo ou obtuso, é maior que todos os mais, e a razão é porque abraça maior circunferência que os outros.
Pressuponho isto, digo agora, que aquelas coisas, que se veem debaixo de ângulo igual, que parecem iguais, o que se vê na figura seguinte.

O olho é o A, os raios são AB e AC, os quais fazem o ângulo B A C; e as grandezas diversas são D E F G H I K L, as quais são diferentes, e desiguais; e porque são vistas em um mesmo ângulo, que igualmente serve a todas, parecem iguais.
Outro princípio.
Aquelas coisas, que se veem debaixo de ângulo maior aparecem maiores, como se declara na figura seguinte.

Vedes duas grandezas iguais, A B e C D, em diversos ângulos, das quais uma aparecerá maior que a outra, como C D aparecerá maior que A B porque o ângulo de baixo, no qual se vê C O E, é maior que o ângulo A B E, porque como está mais perto do olho se vê mais distintamente.
Deste modo se declara outro princípio nesta mesma figura, o qual é, que as coisas que se veem debaixo de ângulo menor aparecem menores. A grandeza A B parece menor que a grandeza C D, e a razão é; porque a grandeza A B é vista no ângulo A E B, que é menor que o ângulo C E D, no qual se vê a grandeza C D; pelo que acima temos dito, G F aparece igual a A B, porque ambas são vistas no ângulo igual.
Outro princípio
As coisas vistas debaixo de mais ângulos, mais certa, e distintamente se veem. Isto se vê manifestamente; porque se tomarmos duas grandezas iguais, que entre si sejam igualmente distantes, e uma seja mais vizinha ao olho que a outra: aquela que estiver mais vizinha se verá em ângulo maior, que aquela que está mais longe. Mas o ângulo maior pode-se partir em mais partes, que o ângulo menor.
Assim que a grandeza mais vizinha se verá em maior ângulo, que a que está longe; e porque o eixo, ou ponto da pirâmide visual, a qual chega à superfície da coisa vista, é mais breve nas coisas mais vizinhas ao olho, que o ponto da pirâmide, que chega às coisas vistas mais longe. Por isto se segue que as coisas vistas em mais ângulos, se veem mais distintas, e mais certas.
Exemplo:

Depois disto se deve advertir, que as linhas ou outra quantidade igualmente distante, ou alta, ou baixa, ou de lados que seja, parecerão ao olho que querem correr juntamente, e unir-se quanto mais longe estão do olho. Vede o exemplo na figura atrás, aonde não são os lados A B, e C D, parecerão avizinharem-se um ao outro, com as partes mais remotas do olho E; mas antes as linhas A C, G F, H I, K L, e B D farão o mesmo, assim que o B D parecerá mais vizinho ao K L, que o K L ao H I, e o H I mais vizinho ao G F, que o G F ao A C, porque o B D se vê em menor ângulo que o K L, e o K L do H I; e assim o restante.
Do mesmo modo, as partes da linha A B, e C D, que estarão mais longe do olho, parecerão a vizinhança mais, que as mais vizinhas; porque os espaços, que estão entre as partes mais remotas, parecerão mais vizinhos; porque se veem em ângulo menor.
Donde vem que, se se pusser em perspectiva um claustro, com colunas coberto, estando o olho no meio do edifício, parecerá que o teto se abaixa, e o pavimento se eleva pouco a pouco, quanto mais se vai alongando do olho; e assim a parede da mão direita parecerá que se avizinha nas partes remotas às colunas da mão esquerda, e as da mão esquerda se avizinham à mão direita, como se vê no Teorema 12 de Euclides [“Quando objetos de igual altura são observados a diferentes distâncias, os mais distantes parecem mais baixos do que os mais próximos” - Teorema 12, da Óptica de Euclides de Alexandria]. E assim os espaços entre as colunas parecerão mais pequenos, por estarem mais longe do olho, de modo, que as coisas altas parecerão abaixar-se, e as baixas levantar-se; tudo isto nasce dos ângulos com que se veem as coisas.
Donde, quando fizerdes alguma Arquitetura em algum painel, haveis de tomar o ponto do meio da quadratura, ou circunferência, sendo redondo, e daí haveis de lançar as linhas direitas às partes de fora, e por onde elas bornearem [convergirem], por aí ficarão lançados os filetes [as linhas dos frisos e pedestais], assim dos frisos altos, como dos pedestais baixos, entendo os das ilhargas [dos lados], e não os fronteiros, que esses se lançam à vontade de quem faz a Arquitetura. Mas notai, que este ponto muitas vezes é necessário que se ponha a uma ilharga do painel [num dos lados do painel], ou aonde melhor esteja, mas as linhas sempre bornearão dele [convergirão dele], e o vão buscar.
Outro princípio.
Entre as distâncias iguais postas sobre uma mesma linha reta, as que se virem de mais longe parecerão menores.
Exemplo:

Sejam as distâncias iguais B C, C D, D E, e o olho seja A, do qual saem os raios visuais A B, A C, A D, A E, e esteja A B em ângulos retos sobre B E, e porque no triângulo retângulo A B E são iguais B C, C D, D E, será o ângulo B A C maior que o ângulo C A D, e o ângulo C A D maior que o ângulo D A E, logo maior parecerá B C que C D, e C D que D E.
Outro princípio.
As grandezas iguais, que postas em uma mesma linha reta, estando entre si apartadas, parecem desiguais.
Exemplo:

Sejam as grandezas iguais B C, D E, e o olho seja A, do qual saem os raios visuais A B, A C, A D, A E, e seja reto o ângulo B E A, logo maior é o ângulo E A D que o ângulo B A C, e por isto E D parecerá maior que B C, donde se segue que as grandezas B C e D E parecem desiguais.
E para que melhor se tenham estes princípios na memória, os epiloguei no modo seguinte, depois de já estarem provados.
Os raios, que saem do olho, vão por linha direita à coisa vista, e entre si estão apartados com alguma distância.
Aquelas coisas se veem onde chegam os raios visuais; e aquelas se não veem onde eles não chegam.
As coisas que se veem debaixo de maior ângulo parecem maiores; e as que se veem debaixo de menor ângulo parecem menores.
As coisas que se veem debaixo de igual ângulo parecem iguais.
As coisas que se veem debaixo de raios mais altos parecem mais altas; e as que se veem debaixo de raios mais baixos parecem mais baixas.
As coisas que se veem com raios, que dobram mais à mão direita, parecem mais direitas; e as coisas que se veem com raios, que dobram mais à mão esquerda, parecem mais esquerdas.
As coisas que se veem debaixo de mais ângulos, se veem mais distintamente.
Outro princípio.
Sejam as grandezas iguais B C, D E, F G, as quais estejam postas debaixo do olho A, e do olho A saiam os raios visuais A B, A D, A F; e porque A B está mais alto que os demais raios visuais, logo também o ponto B estará mais alto que os pontos D e F, e pelo conseguinte também B C estará mais alto que D E, e D E mais que F G, pelo que, entre as grandezas iguais postas debaixo do olho, as que estão mais apartadas parecem mais altas.

Outro princípio.
Entre as grandezas iguais postas sobre o olho, as que estão mais apartadas parecem mais baixas. Sejam as grandezas iguais B C, D E, F G, as quais estejam postas em cima do olho A, e do olho A saiam os raios visuais A C, A E, A G; e porque A G está mais baixo que os demais raios visuais, logo o ponto G mais baixo estará que os demais pontos, e por isto F G parecerá mais baixo que D E, e D E mais que B C.

ARTE DA PINTURA.
Pintura, como diz Plínio, é uma representação da forma de alguma coisa, lançadas certas linhas e traços. Esta, se tratarmos do modo de colorir, e tratar as cores, tem três partes; convém a saber; Pintura a óleo, Pintura à têmpera, Pintura em pergaminho, que chamam iluminação; e ainda a Pintura à têmpera se divide em Pintura a afresco. Mas se tratarmos quanto aos lineamentos e traços, é uma só coisa; porque em todos estes modos se guardam os mesmos claros, escuros e meios-escuros; ou como outros dizem, claros, meia-tinta e escuros; e em todos estes modos se guarda o mesmo desenho; só variam no modo de colorir; porque nem todas as cores servem bem a todos, nem o modo com que se assentam é comum a todos; porque diferente é o óleo da cola, e a cola da goma, e óleo.
E porque melhor se entenda que coisa são claros, e escuros, e meia-tinta, façamos particular anotação, e depois trataremos dos modos da pintura, o que mais comumente se usa.
Que coisa seja sombra, e luz na pintura, e de onde se dão.
Daniel Barbaro [Daniele Barbaro foi um humanista italiano do séc XVI, que escreveu sobre arte], tratando este ponto, diz que as sombras na pintura não são outra coisa mais, que falta de luz,; porque onde a luz dá, e fere, sempre ali está mais claro, e onde ela vai faltando, logo as sombras se vão seguindo pouco, e pouco.
E para melhor se isto deixar entender, se advirta, que todo o pintor, que quiser acertar, há de ver, primeiro de tudo, de onde dá a luz na figura, se vem da janela, se vem de cima, se vem debaixo, se é fronteira, se é de candeia, e se são mais luzes; porque então a maior luz, é que se guarda. E vendo primeiro de onde é a luz, verá que todos os altos da figura são claros, e nestes ao colorir, há de pôr cor mais clara, e logo a meia-tinta, que será esta clara com alguma outra que a assombre; e nos escuros servirá a mesma meia-tinta com outra, que a escureça mais; e se for necessária outra mais escura, para os mais fortes, aonde de todo falta a luz, também se lhe aplicará: e para que isto melhor se entenda da luz, se pode fazer experiência de noite à candeia, aonde se verá claramente o que é luz, e o que é escuro: e se o pintor guardar esta ordem, em breve tempo alcançará o que há nesta arte, para saber relevar bem uma figura, e que pareça, sendo pintada, que é de vulto.
Tem esta regra uma exceção, que nos corpos esféricos, e redondos não há luz de todo clara em todos eles, bate só em um ponto, e logo se vai diminuindo, assim como se vai fazendo o redondo, até que bate em um forte, e escuro muito escuro; e a razão é, porque, como é esférico, vai logo a luz faltando a uma [parte], e outra parte, quando é fronteira: mas se é de uma ilharga, daquela onde dá a luz, sempre é mais clara, e aonde falta, mais escura.
E por que dissemos que a pintura constava de certas linhas, e traços, será bem dizer do delineamento de um corpo humano, para se verificar a definição.
SIMETRIA
Das partes, em que se divide um corpo humano, na Pintura, e Escultura.
Symmetria, nome Grego, quer dizer proporção conveniente, que há nas partes, e membros humanos.
Autor dela (como diz Plínio, lib. 35, cap. 8) foi Policleto. Trataram desta arte Alberto Dureiro [Albrect Dürer], em quatro livros, que compôs de Symmetria. João Darse [Juan de Arfe y Villafañe], no livro que fez de Geometria, Daniel Barbaro [Daniele Barbaro] na oitava parte de sua Perspectiva, Vitrúvio lib. 3, cap. 1. E o que deles tirei mais necessário, é o seguinte:
Symmetria de João Darse [Juan de Arfe y Villafañe]
Terá toda a figura dez rostos. O rosto se entende, do nascimento do cabelo da testa, até a ponta da barba [queixo], e não se conta mais um terço, que vai por cima da testa.
Destes dez rostos, os cinco primeiros chegam até o nascimento das pernas, e os outros cinco vão até a planta do pé. De largo tem dois rostos de costado a costado, e fazem os ombros de cada parte um terço. Cada braço tem de comprido quatro rostos até à ponta do dedo maior, começando do sovaco, por onde fica, que estendidos os braços ficam os dez rostos, com os dois que há de costado a costado.
Do umbigo até a ponta do dedo do braço estirado, vem a fazer na ponta do dedo polegar do pé um redondo perfeito. O pescoço tem dois terços de rosto em largo, e em comprido um terço, desde a orelha até à garganta. A orelha tem a altura do nariz. Da ponta do cabelo até a sobrancelha tem um sexto. Da sobrancelha até à maçã do rosto tem um sexto, que tem [também um sexto] de alto cada olho, e neste direito fica o ouvido. Do nariz à boca há um terço de terço. Da boca à barba [queixo] há dois terços de terço.
Exemplo:


Nos rostos, e proporção das mulheres se guarda a mesma medida, que nos homens, (diz o mesmo Autor), tirado que a testa sará descoberta e lisa, e os olhos mais desviados [afastados]; de maneira que haja entre um e outro um sexto até os lagrimais. Serão grandes, mas não muito abertos, e as sobrancelhas não muito largas. O nariz não seja delgado, nem agudo na ponta, nem rombo , senão em meio. Os beiços apertados sem fazer força. As faces redondas, sem que mostrem osso. O rosto mais comprido que largo. Os peitos desviados [afastados], que entre um e outro fique um espaço. O alto do corpo, como já disse, tem dez rostos, e não mostra osso nos membros. As ancas, e a barriga são mais crescidas que nos homens. As pernas grossas, que vão adelgaçando até fazer o pé pequeno, cujos dedos, e forma hão de ser carnudos, e os braços, nem mais nem menos grossos a par do [que o] ombro, e que vão adelgaçando até o colo do braço, e as mãos carnosas [carnudas], que não descubram osso.

Symmetria dos Meninos.
A proporção dos Meninos de três anos (diz o mesmo Autor) tem cinco rostos: um da barba [queixo] até o alto da cabeça, os dois no corpo, e os outros dois nas pernas. Cada um destes se divide em três terços; da superfície da cabeça à ponta do cabelo, um; daí às sobrancelhas outro; e ao comprimento do nariz, um sexto; e outro se dá [até] à boca; e a barba dividida em três partes. Da barba [queixo] aos peitos há dois terços, e daí ao nascimento das pernas há um rosto e um terço. A palma da mão tem um sexto, e os dedos outro, e vem a ser toda a mão de um terço. Do colo do braço ao cotovelo há dois terços, e daí outros dois ao sovaco. As coxas de largo têm um terço, e sexto. A carne será roliça, e branda, e não mostra osso algum, senão algumas arrugas [rugas] fundas, e pelo alto muito carnosas [carnudas]; e destas está uma em cada coxa ao primeiro terço debaixo das nádegas, e outra na curva, e outra na garganta do pé. Nos braços tem outras arrugas nos colos, e nos cotovelos, e joelhos fazem uns buracos em que muito mal se determinam no meio deles os ossos daquelas partes. O pescoço é de só duas arrugas, uma que vai por junto das orelhas, e outra um quarto de terço mais abaixo. Estes membros são todos redondos, e fáceis de mover.
Exemplo.


Symmetria de Daniel Barbaro [Daniele Barbaro].
Daniel Barbaro, no lugar acima alegado [citado], usa de outro modo de lineamentos do corpo humano, e mais fáceis, e são os seguintes.
Um rosto reparte-o em quatro dedos polegares, chama dedo polegar da ponta da unha do polegar até o nó do nascimento do mesmo dedo. Destes dá um ao cabelo, do alto até o descobrir a testa; daí outro até o alto das sobrancelhas; daí outro até a ponta do nariz; e daí outro até a ponta da barba [queixo]; daí até ao nascer das tetas dá um rosto; daí ao alto do umbigo outro rosto; daí ao meio das coxas outro rosto; daí ao meio das rodilhas dos joelhos outro rosto; daí ao meio das canelas outro rosto; daí ao alto do tornozelo outro rosto; daí até à planta dois dedos polegares.
Depois vindo aos braços, faz-se de espádua a espádua [ombro a ombro], aonde jogam os braços, dois rostos; e daí um rosto, e um dedo polegar ao jogar do cotovelo; e daí ao jogar da mão outro rosto, e polegar; e daí à ponta do dedo do meio outro rosto.
A largura da cabeça tem três polegares, na forma que está estampada.
Exemplo.


Simetria de Vitrúvio.
Vitrúvio, lib. 3 cap. 1., diz que de tal modo é composto o corpo humano, que da ponta da barba [queixo] até onde fenecem [acabam] os cabelos é a décima parte do corpo; do alto do peito, onde fenece o pescoço até o cabelo é a sexta parte; da ponta da barba até o alto da cabeça a oitava parte; e da mesma ponta da barba até ao mais alto do cabelo a quarta parte.
O comprimento do rosto se divide em três partes, da barba [queixo] ao nariz, e da ponta do nariz até onde ele fenece com a sobrancelha, e da sobrancelha à ponta do cabelo, em outra parte. O pé tem de altura a sexta parte [do corpo]. Ao cotovelo, a quarta parte. Ao peito outra quarta parte.
Mario Equicola De alveto [Humanista italiano dos séculos XV e XVI, de Alvito, perto de Roma] lib. 2. declarando em certa ocasião a Vitrúvio ajunta que se o corpo é robusto que terá sete rostos, e se for delicado terá oito, e nove. As mulheres de sete rostos o mais das vezes, e até oito. As orelhas bem feitas são aquelas cujo meio círculo é [do mesmo] tamanho como o meio círculo que faz a boca aberta. O nariz será de largura junto à boca, quanto é o comprimento do olho. O nariz ordinariamente se faz tão comprido, como é a boca. A mão é tão comprida como um rosto. O umbigo é o centro do homem, porque daí, lançando o compasso aos braços abertos, vem a fazer hum redondo com os pés escanchados [afastados].
![[Homem Vitruviano, Desenho de Leonardo da Vinci, c. 1490]](https://static.wixstatic.com/media/a50b1d_989a72dbb2ac495b9100157c49e09da7~mv2.jpg/v1/fill/w_600,h_815,al_c,q_85,enc_avif,quality_auto/a50b1d_989a72dbb2ac495b9100157c49e09da7~mv2.jpg)
Isto dizem estes dois Autores. Daniele Barbaro, explicando mais a Vitrúvio, diz assim na sua oitava parte: tão comprida como quereis fazer a altura do corpo, e ponde-lhe-no alto A, e no baixo B; logo parti esta linha com oito partes iguais com os pontos C, D, E, F, G, H, I. e suponde que a parte de cima entre A C, que é a altura da cabeça; depois tornai a partir a mesma linha em dez partes iguais com seus números 1, 2, 3, & c.; depois abri o compasso quanto é dividida em dez partes, e pondo o pé no ponto C, aonde é a barba [queixo], e voltando o outro pé para onde está o A, faça o ponto O, assim que o espaço, que fica entre CO, é a décima parte de todo o corpo, e é o espaço da barba, até a raiz do cabelo, donde é o alto da testa.

Depois parti a linha AB, em seis partes iguais, e tomai uma delas do ponto O para a parte do B, e aí notai K, onde será o alto do peito, e desta até o alto da testa, onde está o ponto O, será a quinta parte da altura do corpo: e assim se compõe o texto de de Vitrúvio, que diz a quarta parte [Filipe Nunes corrige Vitrúvio]. Além disto, parti o espaço entre o ponto C, e o ponto O em três partes iguais, e a de cima dá [corresponde] à testa, a do meio ao nariz, a de baixo do nariz à barba [queixo], e assim se reparte o corpo humano.
O pé é a sexta parte da altura, e o cotovelo a quarta, pondo o comprimento da mão. O peito conseguintemente a quarta, compreendendo o peito debaixo; porque da altura do
peito onde está o ponto K à altura da cabeça onde está o ponto A, é a quinta parte [da altura],
e assim deste modo divide Vitrúvio o corpo humano. Até aqui é [a partir dos textos] de Daniele Barbaro.
Simetria de Alberto Dureiro [Albrecht Dürer].
Alberto Dureiro no primeiro livro de sua Symmetria, na figura B, segunda, me pareceu mais conveniente, e melhor que todas as mais que usa. A sua repartição não se deixa bem entender; e porque claramente se veja, a porei em latim assim como está na sua tradução de língua todesca [alemã] em latim, e é a seguinte:
Ita longitudinem membrorum metieris. A syncipite, quod bregma dicitur, usque ad medii juguli summitatem una pars esto decima et una undecima. Ad summos humeros duae partes. Ad imum mentum una pars. Summitas verticis media est inter sinciput et frontem. A mento usque ad radices capilli una decima. Hanc si partitus fueris in tria aequalia spatia, primum frontem, secundum oculos et nasum, tertium os et mentum designabit. A jugulo usque ad summum pectus una. Sub alas una. Ad mammas una. Infra mammas una. Lumbos duae. A lumbis ad umbilicum una. Sinus coxarum una. Imae coxendices una. Pudenda una. Extremam glandam una. Imas nates una decima et una. Ab imis natibus ubi usque femina quasi sulcantur, id est, ad medium femur, una. A planta ad imum talem una. A planta ad montem pedis una. E genu medio usque supra illud esto una. Infra vero una. Ad imam suram, exterius duae sunto; interius una. Ab humero enim, ubi illius caput ad jugulum annectitur, ad cubitum usque duae. Ceterum ab humero ad imos musculos una. A cubito ad extremos usque digitos una. Ab extremis digitis retro ad extremam manum una. Et si in unam producí non est inconcinnum, si cui forte ita libeat. [Assim medirás o comprimento dos membros: da síncipite, que se chama bregma, até ao topo do meio do pescoço, seja uma parte a décima e uma a undécima; até aos ombros superiores, duas partes; até ao fundo do mento, uma parte. O cume da cabeça está a meio caminho entre a síncipite e a testa. Do mento até às raízes do cabelo, uma décima parte; e, se a dividires em três espaços iguais, o primeiro designará a testa, o segundo os olhos e o nariz, o terceiro a boca e o mento. Do jugo, ou base do pescoço, até ao alto do peito, uma parte; sob as axilas, uma parte; até às mamas, uma parte; abaixo das mamas, uma parte; os rins, duas partes; dos rins até ao umbigo, uma parte; a cavidade das ancas, uma parte; as extremidades das ancas, uma parte; os pudenda, uma parte; a extremidade da glande, uma parte; as nádegas inferiores, uma décima parte e uma parte. Desde a parte inferior das nádegas até ao ponto onde as coxas parecem ser sulcadas, isto é, até ao meio da coxa, uma parte. Da planta do pé até ao fundo do calcanhar, uma parte; da planta do pé até ao dorso do pé, uma parte. Do meio do joelho até acima dele, seja uma parte, e abaixo igualmente uma parte. Até ao fundo da barriga da perna, externamente, sejam duas partes; internamente, uma. Do ombro, onde a cabeça deste se liga ao pescoço, até ao cotovelo, duas partes; do ombro até aos músculos inferiores, uma parte; do cotovelo até às pontas dos dedos, uma parte; das pontas dos dedos até ao extremo da mão, uma parte. E, se tudo isto for reduzido a uma única proporção, não é inconveniente, caso alguém assim o prefira].
Até aqui é de Alberto Dureiro. Mas eu, usando da licença que ele dá aos que quiserem repartir as suas figuras de outro modo, reparto assim a sua segunda figura. Faço a figura toda em nove rostos. O primeiro da ponta do cabelo à ponta da barba [queixo]. O segundo da ponta da barba ao sovaco. O terceiro do sovaco ao alto do umbigo. O quarto do alto do umbigo ao baixo da barriga. O quinto do baixo da barriga ao meio das coxas. O sexto do meio das coxas ao joelho. O sétimo do joelho ao meio da barriga da perna. O oitavo do meio da barriga da perna ao alto do tornozelo. O nono do alto do tornozelo à planta [dos pés]. Com um terço que ficou por cima do cabelo, fazem os nove rostos.
De largura de ombro a ombro pelo perfil de fora tem dois rostos. O rosto reparto assim, como o reparte João Darfe. Depois dou ao pescoço um terço. E do alto das mamas ao baixo delas outro terço. Da cintura ao nascer das coxas um terço. Do alto do tornozelo ao mais baixo dele meio terço. E daí à planta [dos pés] um terço. Depois, vindo ao braço, lhe dou três rostos até o colo da mão; e o rosto, que fica em meio, reparto em duas partes, e o meio dela é o cotovelo, e dou metade para cima, e metade para baixo. A mão tem um rosto, e assim reparto também as mulheres, com as advertências de João Darfe, já referidas. Não ponho aqui a repartição, que faz dos meninos; porque a melhor é a de João Darfe.
Exemplo.


Nomes das tintas, que se lavram a óleo.
As tintas que se usam a óleo são estas:
Alvaiade [carbonato de chumbo],
Vermelhão [Sulfureto vermelho de mercúrio],
Verdete [Verdigris, feito de cobre exposto a vapores de vinagre. Usado como secante de pigmentos pretos a óleo],
Zarcão [também chamado mínio, tetróxido de chumbo de cor vermelha],
Sinopera [Sinopla, ou terra vermelha],
Genolim, ou como outros dizem, Machim, Massicote [ou litargírio, Amarelo de Chumbo e Estanho],
Sombra de Sintra [Terra de Sombra Natural, ou Umbra], ou de Osso queimado [Negro de Osso],
Cinzas [Azurite],
Ocre claro [Ocre Amarelo],
Esmalte [Azul de vidro potássico com cobalto],
Ocre escuro [Ocre castanho],
Lacra [Goma-Laca Vermelha? Seca mal em óleo, por isso era misturada com vidro queimado ou mínio como secantes]
Coconilha [Cochonilha],
Preto de Flandres [Negro de Carvão? Vandyck?], ou Carmim,
Verdacho [Terra Verde],
Terra roxa [Ocre Vermelho],
Almagra [Almagre, argila vermelha de cor semelhante a bolo-arménio],
Jalde [aparenta ser Auripigmento (sulfureto de arsénio), um pigmento muito tóxico e pouco secativo].
Todas estas se moem na pedra, salvo os azuis, que são delgados, que na paleta com o óleo se concertam. Depois de moídas, para estarem frescas, para em todo o tempo se lavrarem, se porão na água em suas vieiras [conchas de vieira] cobertas com papel o Alvaiade, Zarcão, Massicote, Vermelhão; as outras se cobrirão muito bem, porque lhes não entre pó.
Modo para aparelhar pano, e madeira para a pintura.
Primeiramente, os painéis de pano se aparelham na forma seguinte: tomará cola feita de baldreu, que é pele de luvas, os retalhos delas cozidos muito bem; a água que fica deles, depois de desfeitos, é cola, esta que não seja muito forte; dará duas mãos no painel. Depois de enxuta, toma-se gesto moído, e com a cola faz-se uma lavadura ou aguarela, e assim dá outra mão; depois de enxuta, lhe torna a dar outra mão com mais gesto; depois de enxuto o já feito, de modo que fique muito liso e igual, depois lhe dá uma ou duas mãos de imprimidura, e depois de seco, torna a correr com lixa de modo que fique muito liso e igual. Logo, desenha-se e colore-se de morte cor.
E nota-se que a imprimidura não é outra coisa mais que terra de cinza, ou qualquer outra cor baixa moída com óleo; levará seu secante; e que coisa seja secante, se dirá em seu lugar.
Os panos se aparelharão assim: toma-se uma grade, e nela estira-se o pano muito bem e se pregue; depois lhe dá uma mão de cola fraca, e depois de enxuto, se for necessária outra mão de cola para tapar melhor, também se lhe pode dar. Depois toma-se a imprimidura, e com a faca, ou com uma colher de pedreiro pequenina, ajuda-se a centrar, mas melhor é com a faca, porque leva diante de si todas as arestas que tem o pano; depois de enxuta, lhe dá outra mão que se quebre bem e cubra o pano, e depois de enxuto, o corre-se com uma pedra-pomes, de modo que fique muito liso e sem nós. Logo, desenha-se e colore-se de morte cor.
Chama-se morte cor à primeira cor que se dá na figura, porque sempre morre as cores; e assim é necessário dar-lhe depois, de bem enxuto, outra cor, com cores bem moídas e boas.
Outros aparelham os panos diferentemente, mas este é o melhor modo, porque não quebra, nem se desfaz a pintura, como fazem os Romanífcos, que à conta de os pintores pintarem muito mimoso, fazem muito grande código, e logo o pano é fraco com qualquer mau trato.
De todo o modo de secante
O secante se faz de muitos modos, e alguns não servem senão a certas tintas. O secante de pedra hume é só para o jalde quando se usa a óleo, e faz-se deste modo: toma-se a pedra hume e queima-se em uma telha; depois de queimada, toma-se aquele pó e mistura-se com o jalde, e se faz de modo que não faça perder a cor do jalde, conforme a quantidade da cor; podeis tomar a pedra hume.
Outro secante há para o preto; este é o verde fortemente, somente moído e misturado com o preto na paleta.
Outro secante há de vidro, que serve para a lacra; faz-se deste modo: toma-se o vidro em pedaços e põe-se no fogo até que se faça bem vermelho e se queime bem; depois, quando moerdes a lacra, depois de terdes tirado toda a lacra com a colher da pedra, naquela que ficar sem limpar da pedra, põe-se o vidro já queimado e moe-se muito bem; e ficará já de algum modo parecido com a lacra; este mistura-se na paleta com a lacra, e é muito bom secante.
Também na lacra é bom secante uma ponta finha de zarquão.
Há outro secante de fezes de ouro para todas as cores, que é o melhor; e faz-se deste modo: toma-se as fezes de ouro moídas e ata-se com um paninho; e logo põe-se o óleo em um púcaro a ferver, e lhe mete dentro as fezes, assim no pano; como der uma fervura, tira-se o óleo e de dentro o pano, e o óleo que fique é o secante limpo; este, quando lavrais, molhai o pincel, ou misturai, e é bom secante.
E se não quizerdes cozer o óleo, toma-se as fezes de ouro moídas e à noite põe-se em uma vieira o óleo que acabais de gaitar, ao outro dia, e nele põe-se um pouco das fezes; e fica este óleo, pela manhã, muito bom secante e muito limpo. E não taçais muito, porque logo se faz graxo.
Modo de usar o jalde a óleo
Toma-se o jalde que tenha boa cor bem amarela, ou dourada, e mói-se com água clara muito bem moído; depois de enxuto, torna-se a amolecer com óleo, e usa-se dele tal nos claros com seu secante como fica dito. E para as sombras usa-se dele deste modo: toma-se o jalde em pedra, assim como se compra, e queima-se no fogo com uma colher de ferro, ou em um tefinho, e seja sobre brasas sem fumo; e como fizer fio como mel, então está já queimado. Depois mói-se muito bem com água, e depois de enxuto, usa-se com óleo para sombra do outro jalde; se quiserdes fazer mais sombra, mistura-se terra roxa, que também aí serve, e lacra, e preto para os fortes.
Modo de usar o betún
Toma-se o betún e põe-se em um pequeno de óleo ao fogo, e como estiver brando, daí-lhe quatro voltas na pedra, e fica moído. Este serve nos escuros dos encarnados depois da figura enxuta, como quem regraxa.
De verdete e aluayade se faz verde, se na paleta se concerta para os claros, escuros, e meia tinta. Outro se faz de cinzas e mafiquore. Outro se faz de verdete e machim, ou mafiquote, e na paleta podeis fazer os claros e meia tinta, e escuros, ou ajudando com aluayade os claros, ou com preto os escuros. Os verdes para te servirem na iluminação se dirão em seu lugar.
Modo de usar o aluayade
O aluayade se mói primeiro muito bem com água clara, e depois de enxuto se mói a óleo de nozes. As cinzas usam-se com o mesmo óleo, e para boas cores é necessário lavar primeiro, como diremos na iluminação, onde se há de ensinar a lavar as cores.
As misturas das cores, como se fazem
Primeiramente, o rosado se faz de aluayade e lacra.O pombinho se faz de aluayade e lacra, e cinzas, e na paleta vai-se fazendo à vontade.A púrpura se faz de pombinho, e depois lhe misturam mais cinzas.Dos verdes já ficou dito.O encarnado se faz de aluayade e uma pontada de vermelhão.Os encarnados rústicos se fazem com aluayade, e zarquão, e uma ponta de sombra de cinza.O pardo se faz de ocre claro e sombra de cinza. Todas estas cores se concertam na paleta à vontade de quem as usa.
Sombras para os rostos
O óleo queimado e moído com água, e depois de seco moído a óleo, é sombra para rostos mimosos.Também para rostos mimosos se faz sombra com cinzas e a mesma encarnação.Também se faz outra sombra com ocre claro e preto de frandes.Também verdacho faz muito boa sombra.Para os rostos rústicos, sombra do cinza com a encarnação que já fica dita acima.Também o preto lápis com a encarnação faz uma sombra graciosa para rostos mimosos.
Ter a fazer óleo graxo
O óleo graxo serve para polimento, e para mordente, e faz-se assim: põe-se o óleo ao fogo até que engrosse, e faça fio como mel, logo então está graxo, porque o fazer graxo não é outra coisa senão engrossar-se. Para se fazer com brevidade, toma-se o óleo e põe-se ao fogo em vasos pequenos, para que sendo pouca quantidade, mais depressa o penetre o óleo; e antes de o pôr, lhe põe-se fezes de ouro em pó, ou um pequeno de zarquão moído, e logo se faz graxo; e ao tirar, não venha misturado o zarquão, senão o óleo limpo, e assim se usa no polimento.
Como se faz o polimento
Toma-se o aluayade muito bem moído com água, e depois de enxuto, mói-se com óleo graxo muito bem moído, e logo na pedra podeis fazer o encarnado como vos parecer. Teréis a figura aparelhada como fazeis na gessadura, digo engessada, polida e imprimada, e os encarnados dados com encarnação leuque, para que depois se assente bem o polimento.
E quando assentardes o polimento, que ficará sobre o grosso como massa, assentai com uma brocha assim rudemente; depois, para o polir, tereis uma tes de couro de luvas muito delgado, de molho em água, e fazendo-o à moda do dedo de luva no mesmo dedo, ireis estendendo a tinta ou polimento, e assim ireis polindo.
Quando o couro pegar, molhai com cofinho levemente, e com o mesmo óleo tereis moído o vermelhão com uma ponta de lacra para dar nas faces e na boca, mas adverti que sempre o lábio deverá ter mais vermelho. E depois abrireis os olhos ao pincel, e as sobrancelhas.
Para purificar óleo de linhaça para o alvaiade e azuis
Tomai óleo de linhaça, e pela manhã dai-lhe um olho de sol, e logo lhe botai um pequeno de alvaiade moído, e deixai-o assim estar até o outro dia, e então o usai.De outro modo: tomai um vaso que seja furado por baixo com um torno delicado que se possa tapar ou destapar, botai-lhe o óleo com água da fonte, e batei isto muito bem, e deixai assentar o óleo que fique por cima como azeite. Depois, levemente, tirai o torno para que saia a água, e tanto que começar a sair o óleo, fechai. Isto fazei três ou quatro vezes, e ficará o óleo muito purificado e pronto para usar.
Quando quiserdes fazer alvaiade que se possa usar como o óleo de nozes, moei o alvaiade na pedra muito bem com água, e depois botai-lhe óleo de linhaça; vereis que, indo moendo, a água se vai saindo para fora, e fica o alvaiade só com o óleo, que parece purificado.
Modo de regraxar
O que quiserdes regraxar fareis primeiro com branco e preto, mas os altos sejam bem brancos e os pretos bem pretos. Depois de enxuto e seco, tomai o verdete muito bem peneirado e moído a óleo, e podeis regraxar deste modo: tomai um pano de linho muito brando e ponde-lhe um pequeno de algodão dentro, e depois fazei um modo de pincel, de sorte que fique o algodão de dentro do pano e que não roce a pintura; e assim ide estendendo o verdete, que logo vereis os claros em verde claro e os escuros em verde escuro.O mesmo se faz também com a lacra, mas adverti que leve o seu secante para que enxugue depressa. Podeis também assentar a tinta ao pincel, que seja algo rala, e depois com uma brocha grande folhear tudo muito bem, que fique bem unido.
Modo de fazer cambiantes
Os cambiantes se fazem de muitos modos. Um deles é fazer os altos de masicote, a meia tinta de rosado, e os escuros de lacra.De outro modo: os altos de rosado e a meia tinta de púrpura clara, e os escuros de púrpura escura.Outro modo: os altos de rosado, e a meia tinta de verde claro, e os escuros de verde escuro.E assim se podem fazer quantos quiserem com duas tintas: a mais clara nos altos e a mais escura fazei-a clara para meia tinta, e deixai essa mesma escura para os escuros.
Azul ultramarino — como se lavra
O azul ultramarino, como é tão caro, não se usa muito, e portanto não se sabe o uso dele tão facilmente.Quem o quiser usar há de lavrar primeiro as roupas, ou o que quiser, com azuis de Castela, cinzas; e depois de enxuto, há de lavrar por cima o ultramarino, que como é muito delgado, se se usar só, não cobre bem, porque não tem corpo.
Como se faz mordente para dourar
Tomai as cores baixas que quiserdes muito bem moídas a óleo, e depois tomai numa colher ou púcaro o óleo conforme a quantidade que quereis fazer, e, botando dentro as tintas muito bem moídas, poreis ao fogo o púcaro até que se coza bem. Se lhe botardes um pequeno de verniz, tanto melhor. Depois o guardai, que quanto mais velho melhor é.Também se faz das sobras das tintas da paleta e daquelas peles fervidas em óleo e coadas por um pano grosso.Quando tratarmos dos modos de dourar, lá trataremos de como se põe o mordente e aonde.
Tera perfilar
Depois de terdes debuxado o que quiserdes, costuma-se perfilar, principalmente os encarnados, com sombra e uma migalha de preto e outra de lacra ou cochonilha.Quando se houver de fazer algum pastamane que pareça de ouro, se perfilará primeiro todo o debuxo com almagra e zarquão, e depois de enxuto o retocarão com masicote dourado nos altos e onde dá a luz.
Para fazer um véu branco que cubra cabelos, ou o que quiserem, depois da figura enxuta, a banhai com óleo e limpai brandamente; depois ide perfilando o véu com branco, e com um pincel seco ide solvendo, e onde for necessário retocar com mais branco se pode logo retocar.
Pintura a têmpera
A pintura a têmpera não se diferencia da pintura a óleo senão em ser a cola, e em algumas cores que se não usam a óleo, como é verde bexiga e outro verde escuro de anil e iade, e ainda o montanha.Diferencia-se também no aparelho, porque não leva imprimadura, e para que se veja o modo de usar as cores, ponhamos o aparelho que se costuma usar.
Como se aparelha o pano ou madeira
Tomai o pano e pregai-o numa grade muito bem estirado; depois lhe dai uma mão de cola, não forte nem muito branda, senão que cubra de algum modo, e se levar um pequeno de alvaiade como lavadura ou aguarela, ficará melhor.Logo debuxai e colori com as cores que quiserdes.A madeira se conserta, nem mais nem menos, assim como dissemos para pintar a óleo, senão que não leva imprimadura; sobre o branco se debuxa, e quando colorirdes o pano adverti que, se depois de enxuto for necessário realçar, para o pano tomar bem a cor, que lhe torneis a pôr, que o molheis levemente pelas costas, que então se une uma cor com a outra muito bem; assim como também quando pintais a óleo e quereis pôr alguma cor que fique melhor, haveis de esfregar a parte que quereis realçar com um pequeno de óleo, porque também assim fica unida.
Modo que se há de guardar no campo do painel
Primeiramente, depois de coloridas as figuras que houverem de estar no painel, se começarão os perto e logo os longes, e logo o horizonte e os céus.
Nesta forma: o primeiro monte, que são os perto, se costumam fazer com branco e ocre, escurecidos com roxo ou sombra de cintra; os fortes, mais escuros, com sombra de osso; os altos se podem realçar com masicote misturado com branco onde dá a luz.As cidades encarnadas, realçadas com branco onde dá a luz, escurecidas com preto, ou pardo, e roxo misturado tudo.
O segundo monte será de verde claro, escurecido com verde mais escuro ou com púrpura, que é a sinopera misturada com azul e branco.As árvores do segundo monte serão azuis; os realces, verde claro.As casas, de púrpura clara, escurecidas com outra mais escura.As janelas e portas, de púrpura bem escura.
O terceiro monte será de azul e branco, realçado com algum verde bem claro, escurecido com púrpura clara; as árvores serão de azul e branco muito claras; e assim hão de ser as casas bem realçadas com branco.
Nos céus será o horizonte de masicote e branco, ou com sinopera e branco bem claro; logo azul claro, tudo banhado como que nasce do horizonte; logo outro azul mais escuro, que nasça um do outro.E as nuvens serão de branco e com púrpura escurecidas. Isto é o mais comum; agora fica ao alvedrio do pintor pintar as nuvens e tudo o mais como melhor lhe parecer.
As árvores do primeiro monte se hão de meter primeiro de preto escuro, e logo suas folhas escuras pela banda de fora com verde e sombra de osso; outras folhas secas de machim por fora com roxo almagra.Depois desta árvore seca, será banhada toda com verde; logo lhe farão umas manchas nos altos com verde e branco; e enfim, deste verde e branco vão abrindo as folhas com branco, ou masicote, ou com outro verde e branco mais claro. E isto é o comum.
Modo do colorir em comum
A ordem que se guarda ordinariamente é esta:As encarnações, branco com uma ponta de vermelhão e outra de lacra; as sombras, à mesma encarnação, com qualquer das sombras que já ficam ditas em seu lugar; e onde houver de ser escuro, a mesma sombra serve ao alvedrio do pintor.
As encarnações robustas, zarquão e branco, ou roxo e branco; as sombras, todas são umas.Os cabelos, machim e branco, escurecidos com sombra de osso e sinopera, realçados com a mesma encarnação; ou também pretos e realçados com a mesma encarnação, ou de sombra, ou de ocre escuro, conforme à figura que se pintar, porque os cabelos uns são mais dourados ou secos, outros pardos, e etc.
As roupas vermelhas, branco e sinopera, escurecidas com sinopera tal; os mais escuros, com sinopera e sombra de osso, tudo misturado.As roupas azuis, com cinzas e branco; os claros e escurecidos com azul; e os mais escuros, com púrpura tal.As roupas amarelas, os claros com masicote e branco; escurecidas com rosado, e os mais escuros com lacra tal, como se viu já na anotação dos cambiantes.
A cola com que se usarem estas cores não seja muito forte, nem também tão fraca que tudo se despega, senão em meio.E este modo de colorir serve também para todo o modo de pintura.
PINTURA A FRESCO
A pintura a fresco não se diferencia dos outros modos mais que em não se usarem nela todas as cores, e mais no modo de as assentar. As cores que nela se usam são o ocre claro e o ocre escuro, sombra de Cintra, terra roxa, almagra, pretos ordinários de lápis, esmaltes, verde de montanha, verdacho — de sorte que se não usam mais que as cores que são de terra, de areia ou de vidro, mas as compostas não. Todas estas cores, ao assentar, não levam cola, nem goma, nem alguma liga, somente a cal sobre que se assentam.Isto se entende nas tintas que não vão aclaradas, senão assim como se moem, porque, quando vão aclaradas, serve então a mesma cal muito bem moída, e se usa dela como se fora alvaiade, e ela é a mesma liga. E que cal seja esta que serve, se dirá logo abaixo em seu lugar. O esmalte, quando vai só, e o verde de montanha, consertam-se com leite de cabras, ou outro qualquer; e se vão aclarados, levam cal e não têm necessidade então de leite.
A pintura se faz logo que se acaba de guarnecer a parede, em fresco; e as cores se assentam muitas vezes até que fartem bem a cal. E notai que não se há de guarnecer a parede mais do que aquilo que podeis pintar antes que ela se seque; e se não puderdes pintar tudo o que está guarnecido e se há de secar, haveis de botar abaixo tudo o que não se puder pintar em fresco, e depois torná-lo a guarnecer quando houver tempo para acabar a pintura.
Os encarnados se fazem da mesma cal e almagra ou terra roxa. O roxo se faz de esmalte e terra roxa. A cor do masicote se faz de ocre claro e a mesma cal, e assim todas as misturas que se costumam nas outras pinturas.
A cal que servir por alvaiade há de ser moída. O desenho há de primeiro ser feito em um papel do tamanho do painel, e então se há de picar para se estender, o que faz a pintura mais certa e com mais brevidade. Os pincéis hão de ser de sedas compridas e pouco atadas, para que não desflorem a cal; e para as coisas mais delicadas se usam os outros comuns.
A cal da pintura a fresco há de ser velha de dois ou três anos, ou mais, e há de estar todo este tempo sempre em água, como se faz a que serve no estuque. E há de levar areia de rio, ou de água doce peneirada. E a água com que se amassa há de ser água de fonte que não seja salobra nem salgada; e seja tanto de cal como de areia, ou duas partes de areia e uma de cal.
A outra cal da primeira guarnição do emboçar será da outra cal comum com areia, ainda que seja mais grossa, e também misturada; e depois de emboçar, se põe logo a primeira cal de que falamos, ao modo de estuque. E se ficar parda algum tanto, ou almoçegada, assim ficará melhor acabado.
Isto posto, põe-se o papel picado e se deita o pó de carvão; e pelo desenho que fica se vai perfilando, e logo pintando. E notai que é necessário deixar a pintura sobre o escuro, porque logo, em se secando, aclara muito.
Também costumam fazer a fresco de rascunho em paredes, figuras e laçarias, e tudo o que querem, como se vê em muitas quintas. E fazem deste modo: guarnecem a parede de cal com preto, e depois de seca e feita toda pretada, dão-lhe outra mão de cal a colher, ao modo do estuque; e, quando se quer ir secando, ou logo em fresco, vão abrindo o desenho com um prego ou estilete duro, e vão rascunhando o que querem, fazendo com o rascunho miudinho os escuros, como quem rascunha; e fica então aparecendo o desenho em preto do preto que estava por baixo. As mais lembranças que se poderão fazer para a pintura de fresco, com o uso se podem alcançar.
PINTURA DE ILUMINAÇÃO
A pintura de iluminação se faz em pergaminho, e o melhor é o de Flandres espansado, que o de Castela não é bom. Nela se guarda a mesma ordem que temos dito de toda a pintura a têmpera, tirado que nos encarnados, nos altos deles, há de ficar o pergaminho tal e aquele mesmo branco, porque de tal modo se vai apalpando com a lacra e sombra que sempre o pergaminho fique servindo com a sua mesma cor.
Nomes das tintas que servem para a Iluminação
As tintas que servem e são melhores são as seguintes: branco genuíno é o melhor; vermelhão, o de sebo de fita mais comprida é o melhor; verde terra, o da cor mais formosa é o melhor, e seja bem delgado; verde montanha é um verde azulado, mais delgado que o verde terra; azul de cabeça; cinzas também azuis; ocre claro; lacra; verde bexiga; ocre escuro; catafol; anil ou de taboleta é o melhor; brasil; jenolim ou masicote, o de país é o melhor; bolo arménico; zarcão em torrões é o melhor; ferrugem; maquim; sinopera; caimim.
Modo como se lavam as tintas
As tintas que se lavam e apuram sem se moer são estas: cinzas, masicote, alvaiade, zarcão. Tomarão goma arábica de molho, espessa como mel, e tomarão as tintas uma por uma, e em uma almotolia ou qualquer tigela vidrada, e com o dedo polegar moerão a cor muito bem com esta goma. E depois lançar-lhe-ão água clara, pouca a pouca, e irão desfazendo a goma até ser muito solta.
Depois, enquanto se deixa um bocado, a deixem assentar, e logo vazam a água em outra porcelana, e deixem-na estar um quarto de hora; logo a vazarão em outra, a qual estará compondo-se uma noite toda. E note-se que o pé destas tintas é o que serve, tirado o do branco, e o do masicote e o do zarcão, que não prestam mais que para pintores.
Depois tomai estas porcelanas e tirai-lhes levemente as cores, e guardai-as, porque umas são mais claras, e outras mais escuras.
As cores que se moem, lavam-se e apuram-se são estas: azul de cabeça, vermelhão, verde terra. Depois de moídas, se lavam como já disse das outras, mas sejam muito bem moídas na pedra.
As cores que se moem com água de goma sem mais purificação são: ocre claro, anil, bolo arménico, ferrugem peneirada e bem seca, ocre escuro, lacra, sinopera — moem-se também com goma, e depois se lhes lança uma pouca de água com um dedo de mel, pouca coisa, ou açúcar-cande.
O maquim têm-no primeiro de molho em urina de moço virgem, ou sumo de lima, e com ela o moerão em lugar de água, e com goma se usará. Verde bexiga com água tal se contenta.
Como se fazem as mesclas das cores
As mesclas se fazem assim: o rosado com lacra e branco, e conforme a mistura que se fizer, assim ficará claro ou escuro.
Pombinho se faz assim: tomai lacra, branco e cinzas, e ide compondo o pombinho.
A púrpura se faz deste pombinho, como fica dito, e lhe lançarão das cinzas mais azuladas e um pouco de brasil.
Verde terra se mistura com verde bexiga, e faz uma cor escura, que serve para campos de letras.
E misturado o verde terra com masicote, faz um verde gracioso. Também verde terra com maquim faz outro verde gracioso.
As mesclas das molduras são diferentes: tomai ocre claro com zarcão, ou vermelhão, e serve para os claros; e os escuros serão de lacra ou ferrugem, e os realços de ouro.
Outro modo: ocre escuro e vermelhão, com um pouco de ouro do mais baixo misturado tudo e assentado; depois de seco, se brunirá com dente, e se pode assombrar com lacra fina, e realçar com ouro.
Outro modo: ocre claro com vermelhão e ferrugem, e tudo misturado fica uma mescla boa; os riscos serão pretos, e sobre eles outros de ouro, ou prata, ou branco.
Como se assombram as cores
Toda a cor se assombra com a sua contrária. O verde, masicote e maquim se assombram com verde bexiga ou lacra.
O azul, zarcão, rosado, ocre claro se escurecem com lacra. Ouro com ferrugem ou ocre escuro. A prata ou branco se assombra com anil ou ferrugem. A lacra se assombra com ferrugem e realça com branco.
Masicote com azul, ou anil, ou verde bexiga. As sombras de ouro ou prata serão ferrugem ou ocre escuro.
Os campos se enchem duas vezes: a primeira vez fraca a cor, e depois forte e grossa. O campo de ouro será primeiro com ocre claro, não muito forte, e logo o ouro por cima, depois da cor enxuta, e depois se brune, pondo-lhe um papel por cima para não desflorar.
Outro modo das sombras e realços
Vermelhão se assombra com lacra e se realça com zarcão. Azul se escurece com lacra e se realça com alvaiade. Verde terra se escurece com verde bexiga, e o realço é alvaiade ou masicote. Ocre claro se escurece com ocre escuro e se realça com ouro. Zarcão se escurece com lacra e se realça com alvaiade. Rosado se escurece com lacra delgada e se realça com alvaiade. Masicote é realço do ocre claro.
Como se conserta goma para iluminar
Tomarão goma arábica (porque a outra da Etiópia, que é vermelha, não presta para iluminar) e, pisada um pouco, a botarão em água que a cubra, e estará assim dois dias; depois coar-se-á por um pano, e a grossa será para moer as tintas, e a delgada para iluminar.
Para moer ouro para a iluminação
Tomarão um pequeno de sal cozido, conforme ao ouro que se houver de moer, e moê-lo-ão em uma pedra, muito bem moído; depois lhe irão lançando as folhas de ouro, pouco a pouco, e indo sempre moendo por espaço de uma hora com força.
E para saber se está já moído, tomarão um pequeno e pô-lo-ão na borda da almotolia em água, e dali, quando se desfaz, se vê se está já bem moído.
Depois disto, tomarão este ouro todo e botá-lo-ão em uma porcelana, lavando-o sempre com água clara até que a que deitar não tenha sabor do sal que se moeu ao princípio.
Depois de muito bem lavado, se porá em uma vieira ao ar do lume, a enxugar em brasas sem fumo, e depois de enxuto usa-se com água de goma. Do mesmo modo se faz à prata.
Tera fazer cor de Feta.Tomem pau do Brasil, e raspado com um vidro tomarão as raspaduras, e botá-las-ão em uma panelinha vidrada, e a uma onça de Brasil botarão seis de vinho branco, e esteja assim de molho vinte e quatro horas, e logo se porá ao fogo e ferverá até que mingue a terça parte, e tirar-se-á logo fora a panelinha e lançar-lhe-á meia onça de pedra-ume moída, e para se afinar mais lançar-lhe-á meia onça de cal virgem, ou grã em grão, e meia onça de goma arábica, e depois de coada se pode usar.
Tera Urafil.Tomarão pau do Brasil que seja doce na língua e fal-o-ão em rachas miúdas, e botar-lhe-ão água em quantidade que fique três dedos coberto o pau, e estará assim de molho um dia e uma noite, e depois ferverá até que gaste quase a metade, e depois de frio lancem o pau a uma parte que fique a água só, na qual botarão uma pequena de goma arábica e uma pequena de água ardente, e esteja assim até que a goma se derreta mexendo-a cada dia duas ou três vezes, e como for derretida ponha-se outra vez ao fogo brando, e em começando de ferver lhe botem pedra-ume bem pisada, pouca e pouca, até que faça a água muito vermelha, e quando já estiver (provando-a na unha) em cor de carmesim, botem-lhe uma pequena de pimenta machucada, e como ferver tire-se do fogo, e coe-se, e guarde-se em um vidro e use-se.
Tera Catafol.Tomem lírio muito bem pisado, e ponha-se em uma escudela, e esteja aquela massa assim seis dias, e acabados deitem-lhe pedra-ume como quem salga, e esteja assim dois dias, e acabados estes dias esprema-se e molhem panos naquele sumo, e enxuguem-se ao ar até que façam corpo, e quando quiserem obrar seja com água de goma.
Tera fazer verde Bexiga.Tomarão as sementes dos espargos em setembro, as quais têm muita semelhança com manjerona, e esta semente será muito bem machucada, e depois tomarão pedra-ume e uma pouca de urina de carneiro, e espremido tudo isto assim junto por um pano lançarão o sumo em uma bexiga de carneiro, e por-se-á ao fumo até que todo este fumo se seque e faça um corpo, e depois cortai a bexiga e tirai o verde e usai-o. Outro assim se faz de arruda e erva-moura pisada, e o sumo botado com fel de cabrito em uma bexiga ao fumo.
Tera fazer verde Lírio.Colhem-se as flores do lírio até chegar ao amarelo, e machucadas em um gral, lhe porão uma pequena de pedra-ume quanto seja uma casca de noz, e tudo isto assim será pisado, e depois espremido por um pano, e neste licor botai panos, e os tomai a enxugar muitas vezes para poderem usar-se, e este verde se usa sobre o verde bexiga, e faz mistura também com o verde terra.
Vermelhão como se conserta.Vermelhão é pedra que quase se acha em minerais. Não sendo o ordinário, é feito por artifício com enxofre, azougue e fogo. Toma-se um púcaro novo, e nele se bota o enxofre e o azougue em partes iguais, e depois se barra muito bem para que não saia o bafo fora, e posto ao fogo até que se incorpore uma coisa com outra por espaço de cinco ou seis horas. Conserta-se assim. Tomem o vermelhão e, muito moído com água, o deixem secar, e lancem-lhe uma feura de açafrão, e quando o quiserem usar tomem o que quiserem e desfaçam-no com água de goma e com leite de figueira. E se for para rabiscar lavem-no como o azul, e temperem-no com goma e leite de figueira, e quando não quiser correr deitem-lhe vinho branco, ou vinagre, ou um pouco de mel, e quando fizer escuma botem-lhe uma pequena de cera da orelha.De outro modo se faz. Tomarão a clara do ovo em uma tigela vidrada, e esteja até que se seque, e depois de seca se desfaça com água limpa, e botem-na no vermelhão moído, e use-se.
Goma para o azul.Tomarão um quartilho de vinho branco em uma vasilha vidrada, e lançar-lhe-ão duas onças de goma arábica, e logo se cozerá pouco e pouco até que mingue de quatro partes uma, e depois coar-se-á, e quando quiserem usar o azul, usarão desta água para o desfazer.
Como se destempera o azul.Tomarão o azul em pó, e deitá-lo-ão em uma concha em quantidade de água que seja bastante, e tomem água gomada que não seja muito fraca, nem muito forte, e lancem-na no azul pouca e pouca, e daí a um pedaço podem lavrar com ele.
Verdete, como se faz e se usa.
Laguna interpreta de Dioscórides e ensina a fazer verdete, a que chama raspado, nesta forma. Tomai uma vasilha de vinagre muito forte, e ponde-lhe na boca (que não chegue ao vinagre) umas lâminas de cobre, e tapai logo a panela que não fique por onde respirar, e deixai-a estar dez dias, depois tirai as lâminas, e raspai o verdete, e tornai a fazer o mesmo. Outros tomam as limaduras do cobre, e com vinagre bem forte, e tapam a panela muito bem sem respirar, e a põem ao sol no estio, e no inverno sobre fornos, até que se componha uma coisa e outra.Pramontes o ensina a fazer deste modo. Tomarão vinagre forte, e de lâminas de arame limpe todo o pó e ferrugem, oito onças de sal comum, quatro onças de raspas de vinho tinto, duas onças de sal arménico, meia onça, e três onças de água forte e destemperada com o vinagre, e estarão as outras coisas todas em pó. O vinagre seja sem medida, e quanto mais, tanto melhor, porque se fica sempre bom. Tudo isto porão em uma panela vidrada, e tapá-la-ão muito bem e barrada, que não respire. Depois ponha-se debaixo do esterco por quinze dias, depois tirai-a e esbarrava, e tirai-lhe o vinagre pouco e pouco, tomai então o verdete que fica em uma caixa de pau, e tapando-a muito bem a tornai a pôr debaixo do esterco por oito dias, e então tirai e o usareis deste modo. Tomai o verdete e desfaçam-no com sumo de limão, deitem-lhe uma feura de açafrão, e usai dele.De outro modo. Tomai o verdete e botai-o em sumo de limão por oito dias, e botai-lhe uma migalha de goma, e depois usai dele, que fica muito bom. Os mais modos já se disseram na pintura de óleo.
Como se faz o Alvaiade.
O mesmo Laguna, ensinando como se faz o alvaiade, a que chama cerussa, diz que se faz nem mais nem menos como dissemos do verdete na sua anotação primeira, senão que as lâminas hão de ser de chumbo. E depois dos dez dias se destapa a vasilha, e se tira o vinagre limpo, e o pé que fica, que é o alvaiade, se mói na pedra depois de seco, e se peneira, e o que sai primeiro é o melhor. Depois se compõe em pães com vinagre, e tudo muito bem moído se secará ao sol, o chumbo que se não acabou de consumir se torna outra vez ao vinagre.
Como se faz o Zarcão.
O zarcão, diz o mesmo Laguna, que se faz assim. Tomai umas lâminas de chumbo muito delgadas, e ponde-as em uma panelinha nova uma cama de lâminas, e outra de enxofre moído, e assim continuando até encher a panelinha, e logo ponha-se ao fogo meneando tudo com uma vara de ferro, mas tende os narizes tapados, porque o vapor é muito danoso. Outros em lugar de enxofre põem alvaiade, e tapam a vasilha muito bem, e só lhe deixam um buraco pequeno por onde respire, e a põem no forno (e isto é o melhor) até que se queime muito bem.
Tera assentar ouro em seda ou papel.Tomarão clara de ovo bem quebrada, de cinco ou seis dias, que seja bem podre, e bolo Arménico, e giz mate, convém a saber: três partes de giz ou gesso, e o bolo seja quanto lhe dê uma pequena de cor. E partido assim, deitem-no na pedra, e depois de muito bem moído com a clara, que lhe irão botando pouco e pouco, lancem-lhe juntamente um pequeno de açúcar-candil, ou uma gota de mel, e uma pequena de cera da orelha.E advirtam que não seja muito espesso, nem muito ralo, senão em meio. E com esta tinta façam as letras, e depois de enxutas, bafejem-lhe, e ponham-lhe o ouro, e burnam logo.
Outro modo para seda.Tomem alguma tinta concertada a têmpera, e com ela lavrem as letras na seda, e depois de enxutas ponham o mordente pelos mesmos riscos já escritos à têmpera, e, como estiver em ceção, podeis dourar. E notai que não saia o mordente fora do que está escrito, porque logo repassa.
Outro modo.Tomem leite do pé de figueira em uma concha, e deitem-lhe uma feura de açafrão, desfazendo-o no leite, e com ele escrevam; e depois de enxuto, bafejem-lhe, e assentem o ouro, e limpem com algodão.
Outro modo.Tomem gesso mate, três partes, e uma de bolo Arménico, e goma arábica, e depois de tudo incorporado escrevam, e estando recente para seco, assentem o ouro e burnam.
Tera assentar ouro em pedra, pau, vidro e couro.Para assentar ouro em pedra, se há de guardar a ordem seguinte: primeiramente se há de imprimar, e depois de seca a imprimadura, se lhe há de pôr o mordente, e, como estiver em ceção, dourar.Mas deste modo, com a humidade da pedra nos dias de chuva, não tem lustro o ouro; e para que a humidade o não penetre, se fará deste modo: depois de imprimada a pedra e posto o mordente, lhe assentem folhas de estanho ao modo de quando dourais, e depois de assim estanhada, lhe ponham outra vez outra imprimadura e outro mordente, e podeis dourar, que então fica o dourado com lustro e fora de humidade.E depois, se quiserdes perfilar alguma coisa sobre o ouro, perfilai com ocre escuro ou com sombra.
O pau se doura de dois modos: a um deles chamam ouro mate, como é o que fica assim dito, que assim serve também no pau como na pedra, e o outro se chama ouro burnido.O ouro mate se assenta sobre o pau aparelhado, como dizemos na pintura até ser imprimado, e depois se lhe põe o mordente; e quando está já quase seco, se lhe assenta o ouro com algodão.E se quiserdes fazer um ouro muito formoso, que pareça ouro burnido, fazei que o mordente seja polimento de ocre claro ou escuro, e depois de estar muito polido e liso (que nisto está sair o ouro bom), depois de enxuto lhe assentem o ouro, que ficará muito formoso e tão bom como se fora burnido.
O ouro burnido se faz assim: depois de estar o pau encolado, lhe deem uma mão de gesso comum, e seja ao modo de lavagem, delgado; e se na cola lhe botardes uma cabeça de alhos, serve para que não salte.Depois lhe deem três ou quatro mãos de gesso mate, o qual se faz assim: toma-se o gesso comum, e depois de moído e peneirado, se bota em uma panela cheia de água clara, e cada dia se lhe muda a água e se bate duas ou três vezes, e aos dez dias fica gesso mate.Então o tirem, sequem, e usem dele.Depois de dardes essas mãos que digo, lhe dareis duas de bolo comum, e depois outras duas de bolo fino, e sejam todas estas mãos dadas com cola quente.Depois de enxuto, quando quiserdes dourar, molhareis muito bem, e sobre o molhado com água clara assentem o ouro, e depois de seco, burnam com o burnidor, que se faz de pederneira muito lisa, e ficará o ouro muito formoso.
Para se dourar o caderno de um livro, se há de guardar esta ordem: tomarão uma clara de ovo e botar-lhe-ão uma gota de água, e depois baterão tanto esta clara até que se faça em espuma.Depois, a água que sair dessa espuma é a que serve.Com esta água cobrirão tudo o que se houver de dourar, e depois de enxuta se lhe porá por cima um toque de azeite, e logo o ouro por cima.Depois, com o ferro quente, em forma que possa aquentar a clara do ovo, que já está seca, e depois de impressos os lavores que quiserdes, limpai com algodão, e só ficará o ouro aonde carregastes com o ferro.Isto se pode fazer também em borzeguins, em sapatos, e em todo o couro que quiserdes.
E se quiserdes dourar as folhas do livro, guardai esta ordem: tomai o livro e ponde-o na imprensa muito bem apertado; depois o raspai com uma faca muito bem, depois de bem cortado; e logo depois de raspado o burnam, e acabado de burnir, lhe deem uma mão com a clara de ovo, como fica dito.E estando a clara ainda fresca, tomem um pequeno de bolo Arménico moído, e com o dedo o vão pondo sobre a clara, esfregando até que as folhas fiquem da cor do bolo Arménico.Depois de enxuto, lhe tornem a dar com a clara outra mão, e estando em ceção e quase enxuta, lhe ponham o ouro; e depois de enxuto, burnam com o dente, e lhe imprimam com o ferro os lavores que quiserem.
E se quiserdes fazer as folhas de ouro sobre cores, guardai esta ordem: tomai a mesma clara e com ela concertai verde ou azul.O verde seja montanha ou o que se faz de anil e gualda; e o azul, ou alvaiade e anil, ou de orchilha.E depois de enxuto, o burnam muito bem; tornem-lhe a dar logo outra mão da clara de ovo, como fica dito, e, quando estiver enxuta, lhe ponham o ouro, e logo com o ferro quente o lavrem, e só ficará o ouro aonde o ferro imprimir; e limpem com o algodão.
Para dourar o vidro, se há de fazer o mordente líquido que corra pela paleta, e há de ser de ocre escuro para bom dourado.E com ele lavrem no vidro o que quiserem, e depois de recente para seco lhe assentem o ouro; e como o ouro pegar em todo o vidro, com o mesmo algodão tocado no cuspinho limpem, e ficará só o ouro pegado no mordente.
Para dourar uma rodela ou bandeja ao modo da China, notai que se há de aparelhar como dissemos da outra madeira, e depois da imprimadura lhe dareis a cor que quiserdes, a óleo, também preta, ou vermelha, etc.Depois de muito bem enxuta, que não pegue nela o ouro, debuxai com o mordente de que tratamos no dourar do vidro, e depois que estiver em ceção, assentem o ouro; e depois de dourado e muito bem enxuto, envernizem toda a rodela ou tabuleiro com verniz à tefique, que é muito sequante, e depois pode-se lavar com água quando estiver suja, porque não se desflora nada.
Tera estofar uma figura.O estofo de figuras, ou de roupas, ou tudo o que quiserem estofar, não se faz senão sobre ouro burnido, e guarda-se esta ordem.Primeiramente, sobre o ouro que quiserdes estofar, haveis de dar uma mão ou duas de alvaiade concertado com gema de ovo, o qual se concerta assim: tomai a gema sem clara, e botai-lhe uma ponta de água, e depois batei-a muito bem.E com esta composição haveis de concertar as cores, como se fora cola ou goma.
Depois de dadas estas mãos de alvaiade, que fique a figura muito alva, ide então colorindo o damasco, ou a tela, ou ramos, ou passarinhos, ou o que quiserdes, que então servem aqui as cores da iluminação com esta composição da gema de ovo, e servem os realces todos.Depois de tudo lavrado ao pincel e enxuto, ide então riscando e abrindo a pintura com um estilete de pau, ou de prata, ou um ponteiro duro do que quiserdes, e ficareis descobrindo o ouro onde vos parecer bem.
E para se fazerem uns alcachofres como tem o brocado, fazei um ferro como punção, em que esteja aberto o modo que melhor vos parecer, e com ele punçai.E quando o ouro não tomar bem a cor do alvaiade de primeira, misturai-lhe uma ponta de fel.
Terá fazer um painel com três figuras, que cada uma apareça à vista.
Para se fazer um painel de três figuras, que cada qual se veja por si, e não todas juntas, fará assim:Fazei uma grade do tamanho que quiserdes o painel, e na régua do alto da cabeça, e na de baixo dos pés, haveis de dar boas cerraduras com uma cerra delgada, até quanto seja o comprimento de uma unha, e quanto tiver de altura, a cerra dura tanto há de ter de largura de uma outra, e assim irão cerrando estas duas regras igualmente. Depois de cerradas, acentareis nas costas da grade um painel que já estará feito, nem mais nem menos, como se a grade fora feita para ele.
Depois tereis já dois painéis pintados do tamanho da grade, os quais fareis em tiras da largura das cerraduras, e grudareis estas tiras de um painel com as do outro painel, por esta ordem: que a primeira deste se grudará com a derradeira do outro com as costas uma para outra, e logo a segunda com a antepenúltima, e logo as outras, ide acentando começado na primeira cerradura da mão esquerda do painel, e assim, quando por esta ordem as fordes grudando e acentando, quando pusardes o painel na parede, vereis a figura fronteira sem que vejais as outras, e depois, quando vos pusardes da largura esquerda, vereis outra somente, e da largura direita outra somente.
E se quiserdes fazer isto mais facilmente, tomai umas taboletas de faia, donde fazem as bainhas de espadas, e estas ordenadas como painel pintai nelas, e depois as virai uma a uma, e nas costas pintai a outra figura, e depois as encaixilhai nas cerraduras como fica dito.
Para fazer um painel do mesmo modo com duas figuras:Tomai uma tábua, nela mandai fazer o painel do tamanho que quiserdes, e seja grossa para que nela se possam abrir uns canais que venham aos aires, a ser cortados às duas faces de triângulo direito, e que vão todos iguais, tão largos uns como os outros, como se vê no exemplo.
Terá-se pintados os dois painéis, e cortá-los-eis também em tiras tão largas como é uma da banda dos canais, ou triângulos, e por ordem ireis acentando a primeira tira de um painel na primeira face do triângulo, e logo no segundo a segunda, e assim as outras do primeiro painel.
Depois tomai as outras tiras do outro painel, e ponde a derradeira nas costas do triângulo donde pusestes a outra primeira, e logo a penúltima ponde nas costas do triângulo donde pusestes a segunda tirada do primeiro painel, e assim, ide pondo as outras por esta mesma ordem, e ficareis então fazendo um painel que tenha duas figuras, uma que se veja da largura esquerda, e a outra da largura direita.
Outra invenção dessas figuras:Esta tábua assim feita em triângulos, como fica dito, se desta sorte quiserdes fazer um painel corioso, fareis que os triângulos fiquem atravessados da mão esquerda para a direita, e assim lhe poreis as figuras, nem mais, nem menos, como fica dito no painel de duas figuras. Mas a figura de cima lhe poreis os pés para cima, e a cabeça para baixo, depois ponde um espelho por cima ao modo de guarda-pó, e pondo o retábulo em lugar de altura boa de um homem, vereis uma figura fronteira, e a outra figura ficar-se-á vendo no espelho. E se lhe pusardes cortina, quando tiverdes coberto o retábulo também não vereis nada no espelho, e quando o descobrirdes, então vereis a do espelho, e a outra fronteira.
Outra invenção delas figuras:Daniel Barbaro ensina a fazer uma figura, de modo que vista a mesma figura de uma largura, pareça outra coisa diferente do que parece de frente. E diz assim na quinta parte, capítulo 1 e capítulo 2, de sua perspetiva.
Tomai uma folha de papel na qual debuxareis duas cabeças humanas, ou o que quiserdes, depois piquai estas figuras que debuxastes com um alfinete grosso, que fiquem os buracos grandes. Depois tomai a tábua aparelhada aonde quereis pintar as mesmas duas cabeças humanas, a qual é já muito plana e polida, tomai depois o papel que está picado, e ponde-o sobre a cabeça da tábua, que fique o papel justo com os cantos da tábua. Como se ela fora uma parede, só o papel que fosse à tábua, que fique em esquadria perfeita.
Depois de terdes isto assim feito, endireitai a tábua com o fio ou talho ao fio segundo sua altura, até que, passando os raios pelos pontos picados do papel, que fazem como entrevistas, se veja na tábua que os raios do fio escrevem as ditas cabeças humanas, e assim como as linhas aparecerem, assim debuxareis, as quais serão largas e estreitas em forma, que pondo uma parte da tábua, não vos parecerão cabeças, mas umas linhas direitas e outras tortas em forma de água. Mas se vos pusardes ao ponto donde vieram os raios do fio, então vos aparecerão as cabeças assim como estão debuxadas.
Mas há de supor-se a habilidade do pintor perspetivo, que depois, conforme a estes alinhamentos que aparecem fora do ponto, há de saber dissimular as linhas, e atestar há de fazer que pareça um rochedo, e do nariz há de fazer um tronco, e da boca e barba há de fazer as raízes, e dos bigodes há de fazer uma fonte, ou o que melhor lhe parecer, mas guardando sempre as linhas principais, e dando a cor nas partes que vir que são necessárias para não desfazer o desenho principal. E pode fazer rios, serras, longes, e perto, no mais campo da tábua que se vê, não da largura donde leve a figura, senão da vista fronteira. E para isto não tem necessidade de usar papel picado, senão pintar à vontade para dissimular a figura principal.
E note-se que também os raios da candeia podem servir como servem os do fio. O mesmo autor, na sua nona parte, traz um instrumento do modo de pôr as coisas em perspetiva que tomou de Alberto Dürer; quem o quiser saber, nestes dois tutores o pode ver.
Exemplo do sobredito.
Modo fácil para copiar uma cidade, ou qualquer coisa.
Para com facilidade poderdes copiar uma cidade, fazei um quadrado do tamanho que quereis copiar a cidade, e ponde-lhe uma rede estirada de modo que fiquem as malhas todas direitas na sua proporção. Depois, no papel ou tábua em que quereis copiar, fazei a mesma rede com outras tantas malhas. Depois ponde um ponto de paragem donde descobrais a cidade, e donde vos fique melhor, e ponde o olho em um ponto para que não percais a vista do perfil, e assim podeis facilmente copiar, porque a torre que fica em uma malha da rede buscai nas linhas a malha que lhe responde, e ali ponde a torre. E na outra malha onde aparece a árvore, ponde-a também na outra que lhe responde no papel; assim, pouco a pouco podeis copiar a cidade, ou o que quiserdes.
E se o que quiserdes copiar é coisa de pintura, também se pode copiar fazendo uma grade na pintura que responde às ditas malhas, e outra no papel ou painel em que quereis copiar, e assim podeis ir pelas malhas copiando pouco a pouco.
Daniel Barbaro, na sua nona parte, capítulo y, ensina outro modo de copiar cidades, e tudo o mais que quiserem, e diz assim:Fazei um buraco detrás de uma janela da banda de dentro, na proporção e distância donde vos fica fronteira a cidade, ou o que quereis ver; e o buraco seja do tamanho como é o vidro de um óculo. E tomai um óculo velho que tenha algum tanto de corpo no meio, e não seja côncavo como os óculos de moços que têm a vista curta, e encaixai este vidro no buraco determinado, e feitai depois toda a janela e as portas da estância donde quereis fazer isto, de modo que não tenhais mais luz que aquela que vem do vidro.
Tomai depois uma folha de papel, e ponde-a de sorte atrás do vidro tanto apartado que vejais miudamente na folha de papel tudo aquilo que está fora da caixa, o que se faz a uma determinada distância, mais distintamente: o que achareis encostando, ou apartando a folha de papel do vidro até que acheis o sítio conveniente. E assim vereis no papel as coisas que quereis na forma em que elas estão, mas importa fazer isto em dia claro e com o sol muito sereno; e fazendo experiência vereis que vidro melhor representa, e que representa mais fielmente o perfil, estando firme o papel para que não se perca o perfil.
Outro modo:Para copiar a cidade, ou o que quiserdes, de espaço, tomai um espelho, ou um vidro claro cristalino do tamanho que quizerdes, e ponde-o em paragem donde posteis nele bem o que quereis copiar, e então, na representação que vos fizer, ireis com o pincel lançando as linhas principais, e o perfil do que quereis copiar, seja com alguma tinta de óleo.
Depois que dentro do espelho, ou vidro, tiverdes escrito e perfilado tudo, tomai outro tamanho de papel limpo, e ponde-o sobre os perfis que estão já no espelho ou vidro, para que o papel os receba em si. Depois de enxutos no papel, podeis picar muito miúdo, e depois estilizá-lo às direitas, porque no espelho ficam as aferências; e pelos perfis certos podeis ir colorindo do mesmo modo que as coisas vos aparecem: a muralha, a torre, as casas, etc.
Outro modo de copiar.
Para fazer um retrato do tamanho do vivo, se há de guardar esta ordem para que depois se possa fazer bem o vivo, e assim como:Tomai um vidro do tamanho do rosto que quereis retratar, e ponde-o no rolo que tome todo o perfil que melhor vos parecer, perfilai, e o perfil será com tinta de óleo, assim como dissemos acima. Depois tomai uma folha de papel, e ponde-a sobre os perfis que já estão no vidro para que os receba; depois picai muito bem, e por ele assim picado podeis estilizá-lo, e ficará às direitas, porque o perfil também foi às direitas. Depois podeis ir colorindo tendo diante a pessoa que retratais, porque, como o perfil está ao certo, muito facilitará a quem sabe, depois imitar o vivo.
Terá fazer verniz.
Para se fazer verniz que usam os oficiais de gadamexins, se faz desta forma: Tomai graxa que quiserdes, e óleo de linhaça em igual parte; ponde a ferver assim a graxa com o óleo em um púcaro, e para saber quando estão em cozedura, a graxa se meneará com um pau; e como não tiverdes experiência, então está já em cozedura. E óleo para se fazer, quando está ferido, mete-se uma pena dentro; se estalar, já está cozido. Depois misturai uma coisa com outra assim em quente, e quando quiserdes usar quente ao fogo, ou ao fogo, está de muito bem; achareis que tem lustro bastante, é sequante, mas no branco não dá, porque não faz obra boa, mas nas mais cores sim.
Outro modo:
Outro modo de fazer verniz é para madeira, e se faz assim: Tomai duas partes de almecega, e uma parte de terebintina, fazei do ouro as que quiserdes, um ou dois dentes de alho, e de óleo quatro partes; fervei o óleo, depois na fervura do óleo a almecega, e logo as outras coisas. E se quiserdes que seja cheiroso, ponde-lhe o cheiro que quiserdes, e ponde a curar ao sol. Quando quiserdes usar, seja quente, e estendei bem.
Terá fazer betume de imbutir que pareça marchetado.
Para fazer betume para imbutir, se fará deste modo: Tomai lacre pilado, pez, ou resina, e misturai tudo, mas não muito misturado, porque se faz leuado; daí lhe dá a cor que quiserdes muito bem moída, e depois ponde este betume assim quente nos desenhos que tiverdes laurados; depois de seco, laurai com a garlopa, e ficará muito bem imbutido, que pareça marchetado.
Terá fazer tinta preta para pergaminho.
Para uma canada de vinho branco, e se for vinho braço verde, tanto melhor, lançai quatro onças de galhas partidas; estejam de molho dez ou doze dias, mexendo-as duas ou três vezes cada dia; depois destes dias, coai este vinho, e ponde ao lume até que queira começar a ferver; então, o vinho fora do lume, e lançai três onças de caparrofa, mexendo por espaço de quatro credos; isto feito, estarão prestes três onças de goma líquida como terebintina, que tereis já feita em água, e botando-a no vinho, a mesma e outra tanto. Depois deixai isto assim dois ou três dias, mexendo cada dia duas ou três vezes; depois coai esta tinta, e poderá também servir para pergaminho.
Outro modo:
Para uma canada de tinta, tomai cinco onças de galhas, e quatro de caparrofa, e três onças de goma, e quatro quartilhos de vinho branco, o qual se repartirá pelos materiais, que cada um por si se fará em folhas, quebrando primeiro os materiais; esteja assim quatro ou cinco dias, mexendo-os cada dia. Depois deste tempo, tomai as galhas, e fervei em duas ou três fervuras; depois de coadas por um pano, estando assim quente, lançai a goma e a caparrofa; esteja quatro dias assim, mexendo cada dia duas vezes; depois tornai a coar; esteja dois dias até que se assente, e logo se pode usar.
Outro modo para pergaminho:
Para uma canada de tinta, tomai três quartilhos de água doce, e um quartilho de vinagre em uma panela nova, e deitai dentro quatro onças de galhas, quatro onças de caparrofa, e quatro de goma arábica; as galhas serão machucadas, e a caparrofa muito moída; e tudo isto junto estará de molho dez ou doze dias, e cada dia se mexerá. Depois deste tempo, ponde a panela ao fogo a ferver um bom pedaço; depois, ponde a esfriar, e coai por um pano de linho; logo podeis escrever com ela, que é a melhor para pergaminho.
Outro modo:
Tomai seis onças de galhas de frândes, quatro de caparrofa, três onças de goma arábica, e uma canada de água de cisterna; ponde esta água com as galhas machucadas ao fogo, mexendo com um pau de seguira; daí a dois dias, ponde a caparrofa, e, acabados outros dois dias, ponde a goma; depois, se porá ao fogo que dê uma fervura; depois coai por um pano de linho, e estará pronta para usar.
Outro modo, mais comum:
Tomai para uma canada de tinta preta, uma canada de água de cisterna ou de chuva, quatro onças de galhas miúdas e crespas, e estarão de molho dez ou doze dias, partindo primeiro em três ou quatro partes, e mexendo cada dia; acabado este tempo, ponde dentro na panela, que será vidrada, três onças de caparrofa moída; estará assim as galhas dois dias; depois destes dias, tomai três onças de goma arábica bem pisada, ou líquida como mel, e estará assim outros dois dias; acabado este tempo, ponde a panela ao fogo e fervei duas vezes; depois coai por um pano, e logo se pode usar. E se quiserem que seja mais preta, ponde menos água de cisterna do que digo no princípio.
Tinta para pergaminho:
Tomai de vinho branco, sobre o verde, meia canada, e três onças de galhas, duas de caparrofa, e duas de goma; farão como qualquer das outras tintas, advertindo que, no cozimento, se lhe podem botar folhas de louro, ou cascas de romã, ou de nogueira, ou pedra hume; depois muito bom, tapada, se porá ao sereno por alguns dias, e se usará.
EM LISBOA.
Com as licenças necessárias, e privilégio,
Por Pedro Crasbeeck.
Anno 1615.
FIM






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